A ilha

Trecho do romance inédito de Flávio Carneiro
Ilustração: Theo Szczepanski
01/08/2011

Prólogo
Li nos livros que nem todas as ilhas flutuam. Na verdade, os livros me disseram que o normal é não flutuarem, ilhas são pedaços de terra fincados no fundo dos oceanos, não são como nuvens.

A nossa, no entanto, não tem ligação com a terra. Não estar ligada a outro pedaço de terra pelos lados é natural, caso contrário não seria uma ilha, mas o fato de não estar ligada também por baixo, de não estar presa a nada, de ser uma espécie de cidade boiando no mar, contraria o que dizem os livros.

É certo que um deles faz referência a uma ilha que flutua no ar — circunferência perfeita, suspensa sobre o continente e viajando como uma nave, parando aqui e ali para contatos com os habitantes de baixo. Mas é apenas uma ilha de romance e confiar em romances é como confiar nas ondas do mar, então tudo indica que de fato esta não é exatamente uma ilha comum.

E se flutua, é claro que se move. Alguns pescadores podem atestar o que digo, observando as estrelas eles garantem que a ilha está em movimento, embora navegue numa velocidade tão insignificante que parece estar parada.

Pouco importa se ela parece imóvel, o simples fato de saber que flutuamos e nos movemos — para frente ou para trás ou para os lados, tanto faz — é o suficiente para alimentar todos os dias imaginações famintas, que logo se põem a criar hipóteses de, mais cedo ou mais tarde, esbarrarmos por aí com outra ilha, flutuante ou não, ou com algo maior. O continente, por exemplo.

Isso se estiver correta a teoria em que sempre acreditamos, com base nos poucos registros contidos na biblioteca e nos relatos de antepassados, a hipótese mais plausível, ou a única, para o fato de flutuarmos.

Pode ser que seja bobagem, quem sabe no futuro os cientistas venham provar que jamais existiu a conjunção de fenômenos da qual teria resultado a catástrofe que deu origem à ilha.

Crescemos ouvindo dos mais velhos confusas explicações ou lendo nos livros palavras e expressões que não entendemos muito bem (placas tectônicas, deriva continental, calotas polares). Aprendemos a acreditar que surgimos do rearranjo do planeta, um pedaço desgrudado de um grande continente durante o cataclisma, uma parte que teria rachado e seguido mar afora, ilha, flutuando feito barco.

Seríamos o que sobrou dele, do continente que jaz hoje no fundo dos oceanos, ou que ainda está lá, onde sempre esteve, esperando a volta de seu pedaço desgarrado. Éramos parte da grande cidade, agora exilada de nós, ou nós dela.

Se de fato foi isso que ocorreu, o que posso lhe dizer é que nem tudo foi destruído e no pequeno pedaço que herdamos — a ilha pode ser percorrida de uma ponta a outra numa caminhada de três ou quatro horas — restaram uma olaria e boa parte da fábrica de tecidos, além de ruas, casas e alguma estrutura que, mesmo precária, possibilitou a lenta reconstrução.

Sobrou também o convento dos franciscanos, em condições razoáveis, consideradas as circunstâncias. Erguido num dos morros da ilha, foi refeito aos poucos e dele se manteve a torre com sua biblioteca.

Biblioteca em que me encontro agora, cercado de histórias. E não apenas as religiosas, há várias outras, aventuras pagãs que prudentemente escondi dos olhares de quem entrava e, confesso, foram lidas por mim em momentos de fraqueza, quando a tentação falou mais alto e meus ouvidos quiseram ouvir.

Mesmo um único livro pode servir de abrigo ou perdição, não é preciso ir muito longe para isso, e portanto não é nenhum absurdo dizer que embora modesta a biblioteca é todo um universo (alguns diriam o universo).

Como bibliotecário, nunca tive muito trabalho. Era apenas manter os livros limpos e bem conservados, cuidar para que ocupassem cada qual o seu canto e anotar os poucos empréstimos, para os frades e para um ou outro que de vez em quando entrava aqui, em busca de obras que quase sempre já havia lido. Sobrava tempo para chegar à janela e ficar vendo a praia, os rochedos, parte do mercado, assistindo à vida na cidade.

Depois que tudo começou, depois que estranhos acontecimentos começaram a tirar o sono dos moradores da ilha, a janela passou a mostrar imagens inusitadas, para dizer o mínimo.

Quando me retirei para cá, faz três dias, optando pelo isolamento e pelo jejum (apenas uma jarra d’água me acompanha e não deve durar muito), os frades remanescentes chegaram a cogitar que o fazia por penitência. Sou um velho — o homem mais velho da ilha —, talvez por isso os frades tenham achado que minha hora estava próxima e me isolava na torre para acertar contas com o Pai.

Estavam errados. Precisava me afastar ao máximo dos habitantes da cidade para escrever sobre eles. E se pudesse me afastar de mim para também escrever sobre mim pode ter certeza de que o faria, não duvide, ou duvide, mas não me tome por louco, ou tome se for do seu desejo, que sei eu?

Não podia revelar a verdade a meus irmãos franciscanos. Os poucos que sobraram estão assustados demais e não posso culpá-los por isso. Também não contaria aos leigos. Ninguém daria atenção a uma história, qualquer que fosse, diante do que vem acontecendo na vida real. Ainda mais contada por um bibliotecário de imaginação delirante, como dizem por aí.

Só me restou uma alternativa, a de subir a torre do convento e me trancar na biblioteca, na tentativa de contar a verdadeira história da ilha a alguém que não conheço e não sei onde está, em que lugar, em que século, alguém que nem sei se existe. Só me restou uma saída: você.

E se você é real — daqui em diante preciso acreditar nisso, me desculpe, não me leve a mal mas você existe, chego a sentir seus dedos virando as páginas —, se é alguém de carne e osso (ou seja lá de que matéria venham a ser moldados os homens e mulheres no futuro), talvez já conheça a minha história, ou pelo menos uma versão dela. Duvido, porém, que saiba o que realmente ocorreu em nossa pequena ilha flutuante.

A história não começa quando o continente teria se partido, surgindo da ruptura a nossa ilha, habitada por algumas centenas de almas (a maioria boas), nascida de uma belíssima cidade que, se ainda existe, está sem um pedaço. Também não começa na época em que nos estabelecemos por aqui e começamos a viver uma vida quase normal.

A história começa de fato há poucos dias, quando veio dar na praia, vindo do mar aberto, a primeira garrafa.

1
Se você ainda está aí, pode imaginar o cenário que surge de repente na janela da biblioteca, que agora não mostra o mar, os rochedos ou parte da cidade mas um quarto comum, de uma casa qualquer.

Consegue ver a menina (na verdade já tem catorze anos) deitada no chão, rosto virado para o teto, olhos abertos? Se tivéssemos chegado um pouco antes teríamos presenciado a cena, a mãe dizendo não pela terceira vez, indiferente às súplicas da filha.

Logo em seguida ouviríamos o barulho da porta se fechando com estrondo, ecoando nos ouvidos de Catarina. Ela sabia que não estava trancada, a mãe nunca trancava a porta, no entanto era como se estivesse, as palavras da mãe funcionavam como um ferrolho. Nada de mergulho perto dos rochedos, dissera tantas vezes.

Sem muito esforço, é possível adivinhar o que se passou na sua cabeça: ficar presa nesse quarto, olhando para as paredes, até quando? A mãe tinha muito trabalho na cozinha e depois receberia visitas, só no final da tarde viria abrir a porta, liberando Catarina do castigo por ter novamente nadado onde não podia (não conseguira resistir, precisou e precisa ainda mergulhar perto dos rochedos para conferir as palavras escritas nas paredes do antigo túnel, de onde saía o trem submarino da cidade antiga, será que a mãe não entende?)

Depois disso se deitou no chão (foi quando a vimos pela primeira vez). Agora se levanta, tirando a roupa.

E se você por acaso for uma dessas raras almas sensíveis e sentir algum constrangimento ao ver o corpo nu de uma adolescente, não precisará desviar os olhos: sob a roupa está um maiô, que lhe cobre as partes íntimas e um pouco mais. Se mantiver seus olhos abertos, poderá também conferir que joga longe o vestido e vai até a janela ver o mar, sob a luz do sol do começo de tarde.

O que aconteceria se algum daqueles gênios das histórias contadas pela mãe aparecesse e ela pudesse pedir: quero asas que me levem até lá? Catarina alçaria vôo com seu maiô colorido no corpo magricela, de pernas finas e longas, como se fosse um pássaro desses que já não há, ou nunca houve, sobrevoando as laranjeiras no pomar, subindo num lance rápido para escapar das copas da velha mangueira, aprumando-se depois e se deixando levar, suave, até a descida na areia da praia.

Infelizmente não há gênios disponíveis, quem sabe estejam também eles dormindo a sesta — como a maior parte da ilha —, embalados pelo barulho do vento nas folhas da palmeira, o balanço lento marcando o ritmo da tarde, devagar, bem devagar.

Ela pensa em Bernardo. Por que teria escolhido para melhor amigo um noviço franciscano?, pergunta a si mesma, sem muito interesse na resposta. Se estivesse ali, ele talvez tivesse um plano, ou quem sabe surgisse do nada com uma corda improvável e a lançasse até suas mãos.

Uma corda, claro. Retira lençóis e cortinas, amarra tudo e prende uma ponta ao pé da cama. Joga pela janela a outra ponta e dali a pouco já está equilibrando o corpo frágil do lado de fora, descendo até os galhos mais altos da mangueira, para onde se muda apoiando os pés num galho mais grosso, depois as mãos.

Desce pelo tronco até o chão e quando seus pés descalços pisam a terra ligeiramente úmida sente um prazer imenso — e de vida curta porque lá vai ela correndo por entre as outras árvores do pomar, o cabelo fino, castanho, se misturando às folhas secas dos pés de cana, as pernas esguias se desviando dos troncos tortos das goiabeiras, a mão finalmente empurrando o portãozinho de madeira que dá na praia.

Corre pela areia quente até se jogar de vez às águas. Primeiro o longo mergulho na parte ainda rasa do mar, o movimento harmonioso de braços e pernas impulsionando o corpo, a sensação de estar toda envolvida pela água, olhos abertos para qualquer surpresa ou mesmo para o que ela já se acostumara a ver e sempre queria ver de novo, os raios de sol atravessando a água e formando finas colunas, filetes de luz ondulando em variados tons de verde. Mais uma braçada na direção do fundo, a velha brincadeira de tocar a areia com as pontas dos dedos, tomando impulso para a subida veloz, o rosto furando a superfície.

Adora quando os sons retornam depois de terem estado ausentes por alguns segundos. É como se tivesse mergulhado também no mais profundo e misterioso silêncio, para retornar e conferir que as coisas ainda estão em ordem no mundo de fora, exatamente onde ela as deixou.

Agora podemos vê-la em repouso, repondo energias, o rosto virado na direção do céu, vendo gaivotas em vôos rasantes atrás de peixes que ela não pode enxergar. Não vejo os peixes e eles existem, pensa, estão logo ali, embaixo das águas. Poderia fazer um inventário das coisas que não via mas tinha certeza de que existiam. O que entraria na lista, os peixes e o que mais? O sol quando está de noite, as estrelas quando está de dia, as bactérias, o sangue correndo nas veias, o medo, as letras no livro fechado, o ar, o fermento no pão, a margem do outro lado do oceano, os sonhos dos outros, as amebas, os filhotes das amebas, os filhotes dos filhotes das amebas.

Não, não fugiu do quarto para isso, precisa nadar até adiante e em braçadas vigorosas vai vencendo as águas, a nau Catarina, indo cada vez mais longe da praia, seu destino definido desde o início: os rochedos.

Sobe rápido pelas pedras e anda um pouco até o outro lado, o melhor ponto para o mergulho até a gruta. Foi Bernardo quem lhe falou dela pela primeira vez. Os frades não gostavam que mergulhasse mas ele vez ou outra mergulhava escondido e um dia contou a Catarina que a gruta perto dos rochedos era uma prova de que de fato um dia teríamos feito parte do continente. A entrada da gruta tinha a forma ovalada, era a saída de um túnel. O revestimento das paredes e do teto, os pedaços de metal alinhados no piso, parecendo trilhos, as placas com sinais e as palavras escritas nas paredes (as que Catarina quer ver de novo, com mais atenção), era óbvio que antigamente partia dali um trem submarino.

Ela se prepara para mergulhar mas ao arquear o corpo se detém, vendo a garrafa flutuando.

O primeiro impulso é o de nadar até lá mas a garrafa oscila muito e está perto das pedras, seria arriscado, e além disso talvez haja uma bomba dentro, chega a fechar os olhos e tapar os ouvidos quando percebe que a garrafa se aproxima, bum!!!, ela ouve uma onda mais forte batendo nos rochedos. Não há bomba nenhuma (ou não explodiu ainda).

A garrafa segue na direção da praia do outro lado. Catarina salta e nada atrás dela por uma boa distância, está perto, quase pode tocá-la quando uma onda inesperada avança com a garrafa e a menina vê que não vai dar.

Contrariada, vai nadando de volta à praia, sua praia, é tarde para retornar ao rochedo e mergulhar até a gruta. Já nem sente as braçadas, as pernas em movimento, seu corpo cruzando as águas sem dar por isso, só tem pensamentos para a garrafa. De onde teria vindo? Garrafas no mar pertenciam às histórias que ouvia quando era pequena, por que esta teria voltado agora?

Pisa a areia da praia e atravessa o pomar quando o sol começa a se pôr. Corre até a mangueira, sobe pelo tronco, pelos galhos, e lá está a ponta da corda. Desamarra e de um salto entra no quarto. Tenta arrumar as coisas da melhor forma possível (as cortinas estão um pouco sujas, um verde folha-de-mangueira bastante suspeito, e o lençol mais amarrotado do que devia). Abre a porta — destrancada, ela apenas confirma —, fecha e torna a deitar-se no chão, como a vimos no início do capítulo.

Quando a mãe entra e a chama para o jantar ela desce silenciosa, levando nos cabelos um fiapinho de alga.

No quarto, antes de dormir, as pazes já feitas, a mãe pede mais uma vez a Catarina que tome muito cuidado com os rochedos.

Sozinha na penumbra, deitada na cama e vendo pela janela uma ponta do céu e as copas das árvores mais altas balançando lá fora, a menina volta a pensar na garrafa.

Viera de longe, sem dúvida. Devia estar levando alguma mensagem secreta, afinal é para isso que servem as garrafas lançadas ao mar, não é? Alguém está querendo fazer contato, o que significa que há outras pessoas, ou pelo menos uma outra pessoa, em algum outro lugar do mundo, que sabe da existência da ilha. Se essa pessoa sabe que a ilha existe pode saber também que ela, Catarina, nada naquele mar todas as tardes, por que não? E imaginando essas coisas acaba caindo no sono, abraçada à sua discreta esperança.

●●●

Eis que à nossa frente o quarto de Catarina, a casa, o quintal com sua velha mangueira, tudo desaparece, deixando de ocupar o cenário que vemos da nossa janela (perdão, já a considero minha e sua), dando lugar agora ao cais da ilha.

Toda ilha habitada tem um cais e talvez apenas por esse pressuposto lógico esta também tenha o seu, já que de serventia não desfruta nenhuma, se não há navios que aportem por aqui ou daqui se lancem a outros mares. É provável que já existisse na cidade antiga e tenha sido refeito pelos que reconstruíram a nossa, quem sabe apenas com a intenção de redesenhar uma pequenina parte do que éramos antes. Os pescadores preferem atracar seus barcos na areia da praia ou nas águas calmas da baía e o velho cais é apenas um enfeite à beira-mar.

De enfeites também se vive, diria Clara, sentada no banco de madeira. Não devemos lhe perguntar o que a leva a passar as tardes aí, com o caderno no colo e o lápis na mão, como se estivesse sempre a um passo de começar um desenho que nunca vem — é o que acontece agora, veja, ela segura o lápis na mão direita, o braço levemente suspenso no ar, a poucos centímetros do papel que jamais temeria por sua alvura se soubesse que daquele lápis não sairá traço algum.

Quem a vê de longe supõe que desenha e ninguém estranharia o fato de uma jovem (bela jovem) querer traçar no papel o contorno das montanhas, as aves tão próximas ou os rochedos mais além. Clara, no entanto, não está preocupada em desenhar nada. Já esteve, houve dias em que se sentava à beira do cais disposta a esboçar alguma figura, um rascunho qualquer, linhas desencontradas, o que fosse, mas já não se trata disso. Talvez não queira ser incomodada, vive cercada de gente boa parte do dia, homens e mulheres de temperamentos diversos, as tardes queria apenas para si e fingir que estava ocupada, desenhando, seria uma boa estratégia para afastar intrusos.

Pode ser também que seja mais do que isso. Pode ser leve consigo o material com um único propósito: o de esperar que no meio daquelas tardes apareça algo novo, rompendo o cenário de todo dia. Algo como isso que vê ao fundo da paisagem: alguém nada devagar, depois descansa, o rosto virado para cima, planando sobre as águas.

É uma menina a personagem que Clara vê no mar. Ela nada bem e agora segue veloz até os rochedos, subindo depois pelas pedras.

Percebe que a menina olha para um ponto específico. Acompanha seu olhar e vê um objeto escuro, algo que não pode identificar ainda, passa pelo rochedo e continua, na direção da outra ponta da praia. Uma garrafa?

Clara levanta-se e vai até a beira. O objeto paira na água e ela pode observá-lo melhor, retendo em sua memória tamanho, perfil, a cor escura, a rolha a vedar o que quer que viaje lá dentro, detalhes que possam servir quem sabe a um desenho futuro.

Não consegue pegá-la mas não faz mal, basta a presença em si, sua mera aparição. Volta ao banco, senta-se e de imediato apanha o lápis. Se estivéssemos lá estaríamos de pé, vendo sobre seus ombros o que ela vai desenhar. A mão hesita e ao invés de um desenho o que vemos é uma frase, escrita diante de nós: uma garrafa lançada ao mar.

É isso que a consome na tarde quente, a existência daquela garrafa, um objeto cercado de água por todos os lados, como sua ilha, com a diferença de que a ilha parece imóvel (embora não esteja), enquanto a garrafa esbanja um movimento provocador, quase inaceitável.

Ela se lembra do sonho que teve essa noite. Estava sentada na calçada de uma rua qualquer, era dia, e do outro lado da rua viu passar um homem alto e magro, de paletó escuro. Não dava para ver seu rosto mas tinha certeza de que o conhecia, sem saber dizer quem era. O homem, de cabelos longos e barbicha grisalha, estava acompanhado de um cão. Parava em frente à porta de uma casa e batia três vezes. Esperava um pouco e batia três vezes novamente. Nova pausa e mais três batidas. Logo depois tirava de dentro do paletó uma garrafa de vidro e a colocava ao pé da porta.

Seria a mesma garrafa do sonho?, a mesma que agora se afasta do cais e avança na direção da outra ponta da praia?

Há alguém lá. Clara ficou atenta à menina e não prestou atenção ao outro lado, onde vislumbra uma paineira, e sob ela alguém sentado. É um franciscano, o hábito inconfundível. Não pode perceber as feições, se é moço ou velho, conhecido ou não, mas não há dúvidas de que se trata de um franciscano.

Seria para ele a mensagem?, se pergunta, sem duvidar um minuto de que de fato se trata de uma mensagem. Chega a sentir uma ponta de inveja, gostaria de estar junto ao frade, só para conferir se a garrafa vai mesmo parar naquele ponto ou seguir pelo mar.

A tarde caminha para o final, há pouca luminosidade agora e Clara fecha os olhos por longos minutos, buscando o mais escuro que possa. Está quase adormecida mas não vai dormir, precisa apenas estar no mais escuro possível, de modo que diante de si, os olhos fechados, veja uma página branca, completamente branca, na qual vai enfim desenhar, no papel invisível, o contorno exato de uma garrafa boiando nas águas.

●●●

Você pode enxergar através da janela aquele pedaço de terra, a ponta da ilha, e nessa ponta uma árvore, em cujo tronco está encostado um noviço franciscano? É bem moço, acaba de completar dezessete anos, e olha sereno para o mar. Pois este que aí está, sentado à sombra, com as costas apoiadas no tronco da velha paineira, mãos atrás da cabeça e pernas estendidas, na pose clássica de quem não tem nada para fazer e o faz sem culpa, este é Bernardo.

É ele quem respira a maresia e mais uma vez se pergunta de onde teria vindo toda essa imensidão de águas. Os livros não se entendem muito bem a respeito, há explicações desencontradas e Bernardo fez o que costuma fazer nesses casos: escolheu duas que lhe pareceram mais interessantes e passou a acreditar nelas. A primeira dizia que a água chegou à Terra depois do choque com cometas, compostos sobretudo de gelo. Uma outra afirmava que no começo o planeta era massa incandescente coberta por nuvens pesadas, em algum momento se resfriou e caíram do céu chuvas intensas, que mais tarde dariam origem ao primeiro oceano.

Bernardo juntou uma e outra e passou a acreditar na mistura das duas — para desespero de Pepe, de quem é aprendiz faz alguns anos, e para angústia igual por parte dos frades superiores, que o vêem desacreditar do Gênesis (o que ele nega, acredita no Gênesis e também nas explicações científicas, vá você entender de que modo alcança tal proeza).

Permanece olhando para o oceano que lhe ensinaram ser finito mas cujo fim ele jamais viu. A outra borda, a margem do outro lado existe, na biblioteca há diagramas e cálculos complicados provando isso. Se o outro lado existe ninguém da ilha chegou a tocá-lo e isso basta para que Bernardo se dê ao luxo de supor que está diante do infinito.

Que terras, céu, árvores, que pessoas haveria na margem de lá? E por que nunca ninguém do outro lado veio até nós? Nós é que não podemos ir até o continente, se não sabemos onde fica. Ou estaria aí o motivo, no fato de eles também não saberem onde estamos? Saberiam ou desconfiariam da nossa existência como sabemos ou desconfiamos da deles, sentiríamos falta um do outro, pai e filha apartados, mas eles também não teriam certeza de nada e por isso estariam lá agora, no seu canto, sozinhos, sonhando conosco como sonhamos com eles.

Há uma mudança no seu rosto. É provável que suas reflexões estejam variando para temas mais amenos: os novos afazeres no convento — finalmente lhe foi concedida a tarefa de ajudar na biblioteca, como sempre quis — ou as mudas de manjericão que precisam ser plantadas logo.

Gosta de plantas. Um dia se deu conta de que era meio mágico tirar uma parte de uma planta e, colocando-a na terra, criar uma outra, igual à primeira. Depois ficou fascinado quando leu que antigamente havia cientistas que faziam isso não com plantas mas com pessoas. Acharam uma palavra, klon, que em alguma língua significava broto (de um vegetal) e a usaram para dar nome ao processo de replicação humana.

Bernardo imagina Deus criando Adão e de uma costela de Adão gerando Eva, a primeira clonagem da história, a mulher nascendo de um broto do homem. E quem sabe não teria sido Eva a clonar depois não uma planta ou pessoa mas a própria água do paraíso — se é possível com seres vivos pode ser também com os outros. Ao ser expulsa, Eva teria roubado do paraíso a matriz para criar seu klon de água e com ele moldar os rios e mares da Terra. Seria uma nova explicação para a origem dos oceanos e esta lhe parece tão mais atraente que passa a acreditar nela: os mares não teriam sido criação do cosmos nem de Deus mas da mulher, a partir de uma matriz divina — as águas puríssimas do paraíso.

De pronto seu raciocínio dá um salto, deixando Eva à porta do Éden. Sentimentos confusos começam a rodar em torno dele, mosquitos zunindo em carrossel. Ele os afasta, aos mosquitos imaginários, e tenta retomar o fio do que vinha pensando, mas não é possível retomar coisa alguma porque seus olhos se deparam com algo no mar, a poucos metros de distância.

Uma garrafa escura, feita de algum vidro resistente, bate nas pedras da beira da praia e não se quebra. Se garrafas pudessem falar, aquela teria muitas histórias para contar sobre os lugares por onde havia passado, ou poderia pelo menos dizer de onde viera.

Bernardo tenta criar um rosto para a pessoa que a teria enviado. Quem sabe um ancião, solitário na montanha, a mão calejada e seca a escrever algumas palavras sobre um pedaço qualquer de papel. A morte se aproxima, o velho sábio dobra o papel e o coloca na garrafa, depois a deixa cair sobre as ondas.

Quem visse Bernardo de perto, com as costas apoiadas no tronco da árvore, poderia confundi-lo com uma estátua não fosse o movimento dos olhos, muito vivos, e uma ou outra variação nos lábios.

Pelo menos é assim que podemos vê-los agora, os lábios, num sorriso apenas ensaiado, quando o noviço formula a hipótese de ter sido não um homem e sim uma mulher quem depositara no mar a garrafa. Não, não teria sido no mar, num riozinho qualquer, só depois, partindo dali, ela teria alcançado as águas salgadas e dado seqüência à longa viagem. Primeiro teria passado pelos braços macios da moça que recortou uma renda de seu vestido e a colocou na garrafa, sabendo que seu amado saberia reconhecer aquele pedaço de pano e iria buscá-la, onde quer que estivesse.

Essa mensagem não é para mim, ele diz a si mesmo. Não se sente capaz de decifrar segredos de velhos sábios, por mais singelos que sejam. E por mais que se afeiçoe à moça e mesmo que ela o aceitasse em lugar do verdadeiro amado, fizera voto de castidade e não poderia quebrá-lo, ainda mais sendo a jovem feita apenas de sonho (embora fosse divino deixar de ser casto com mulher tão diáfana).

De todo modo, não custa nada caminhar até a água e apanhar a garrafa e é isso o que faz.

Coloca a garrafa contra a luz, buscando identificar algo no seu interior. Está leve. Ele a balança um pouco, depois tira a rolha, vira a garrafa de cabeça para baixo e com a outra mão bate no fundo. Acredita ter ouvido um ruído lá dentro, inclina um pouco mais, bate outra vez e vê, no gargalo, a pontinha de um canudo de papel.

Retira o papel amarelado, preso ao meio com um cordão, e desata o nó, os olhos se abrindo espantados diante da visão que tem diante de si, do pequeno pedaço de papel meio sujo, um pouco úmido mas sem deixar de mostrar o que é, e que daqui também podemos ver, pela janela da biblioteca: um mapa.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

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