A imigrante involuntária

O longo "Brooklyn", de Colm Tóibín, se sustenta pela ausência de sentimentalismo e de armadilhas de linguagem
Colm Tóibín, autor de “Brooklyn”
01/08/2011

Emigra-se pelas razões mais diversas: guerras; perseguições religiosas, políticas, étnicas; discriminações de qualquer natureza; desastres ambientais; pobreza sistêmica etc. Nos anos 1980, a motivação publicamente assumida pelos brasileiros que partiam para os Estados Unidos, por exemplo, era a recessão e a hiperinflação, mas as motivações eram sempre múltiplas, conforme verifiquei in loco em mais de uma centena de entrevistas para meu Os estrangeiros do Trem N (Rocco, esgotado).

Os processos migratórios não se sustentam apenas por fatos exteriores ao sujeito: é necessária uma impulsão maior, que brote de dentro, e intensa a ponto de criar a ilusão de que os dramas pessoais podem ser superados com o transplante; no fundo, independentemente das conjeturas e contextos, todos acreditam numa vida melhor “lá”, mesmo sem ciência certa sobre a riqueza simbólica que ficou para trás.

Brooklyn, romance do irlandês Colm Tóibín, individualiza de modo original o conflito decorrente da transposição geográfica, condensando-o numa jovem protagonista irlandesa (Eilis) imatura e introspectiva que se deixa levar por um movimento totalmente involuntário, ao contrário daquele do imigrante padrão. Rose, a irmã mais velha, é quem finalmente convence Eilis a sair de Enniscorthy (onde nasceu o próprio Tóibín), na Irlanda, para ir trabalhar nos Estados Unidos.

A opção de partir lhe é oferecida em condições incomuns. O padre Flood, radicado nos EUA, amigo da família, bancaria a passagem de navio, recomendaria uma pensão-moradia, arranjaria trabalho e, talvez, uma vaga no curso de contabilidade do Brooklyn College. Mesmo assim, Eilis sente-se selecionada para uma coisa para a qual não estava nem de longe preparada, o que lhe acarreta uma ansiedade que ela achava que só iria experimentar às vésperas do dia em que se casasse.

Sim, ela havia imaginado que iria morar em Enniscorthy a vida inteira, como a mãe fizera, que iria conhecer todo mundo ali, ter os mesmos amigos e vizinhos, a mesma rotina nas mesmas ruas. Esperava encontrar um emprego, casar-se com alguém e deixar o emprego para ter filhos. Nunca aspirou nenhuma forma de liberdade em terra estrangeira e tampouco a conquista de uma vida melhor, no sentido material da expressão.

Intimamente, daria qualquer coisa para poder falar com toda a clareza que não queria ir, que Rose devia ir em seu lugar, que ficaria muito feliz em continuar em Enniscorthy cuidando da mãe. Os Estados Unidos ficavam muito longe, tinham costumes estranhos e um sistema completamente diferente. Por outro lado, na Irlanda do pós-Guerra imediato, a América era vista com glamour. Partir para lá era socialmente mais promissor e incentivado do que permanecer.

No imaginário coletivo, trabalhar numa loja no Brooklyn, em Nova York, dava status, além de tudo; fazia com que um emprego idêntico numa loja em Birmingham, Liverpool, Coventry ou mesmo em Londres parecesse a coisa mais sem graça do mundo. Havia ainda um fator feminino que dificultava ainda mais a manifestação da vontade de Eilis: as mulheres irlandesas podiam tudo (nos moldes da época), exceto dizer em voz alta o que estivessem pensando. Jovem demais para entender as conseqüências de sua reticência, Eilis embarca.

Sutilezas culturais
Os Estados Unidos já estavam então povoados de descendentes de imigrantes por toda parte, pessoas em geral resolutas, ousadas e descoladas do passado. Eilis não era assim. Arraigada e familiar, ela via as rupturas e as separações como ameaças incontornáveis; e sua mentalidade homogênea incitava questões raciocinadas superficialmente (“Como identificar a diferença entre judeus e italianos e entre italianos e americanos?”).

Alguns judeus usavam solidéu e parecia que muito mais judeus do que italianos usavam óculos. E por que a maioria de seus colegas de classe no curso de contabilidade tinha pele morena e olhos castanhos? Por que tão poucas mulheres na sua turma? Por que nenhum irlandês, nenhum inglês sequer? As aulas eram mais longas do que aquelas a que tinha assistido em sua terra natal (“Seria este o motivo de os professores apresentarem a matéria tão devagar?”)

Numa das cartas trocadas com a família, a mãe de Eilis pergunta como a sra. Kehoe (irlandesa dona da pensão onde Eilis foi morar) conseguia bancar o custo de manter o aquecimento ligado a noite inteira. Eilis responde que não era só a sra. Kehoe, que aliás não era nada extravagante, mas todo mundo nos Estados Unidos ficava com o aquecimento ligado a noite inteira. “Ninguém na Irlanda tinha idéia de que os Estados Unidos fossem o lugar mais frio do mundo.”

Os irlandeses que Eilis fica conhecendo num almoço filantrópico de Natal são trabalhadores braçais que construíam túneis, pontes e estradas. A maioria perdera completamente o contato com parentes e amigos na Irlanda. Eilis “nem conseguia acreditar que houvesse tantos, alguns de aspecto muito pobre e velho, e mesmo os mais jovens tinham dentes estragados e pareciam alquebrados”.

O choque cultural se amplia com a entrada de um encanador na história: Tony McGrath. Ele esconde de Eilis seu nome verdadeiro a fim de evitar conflitos com a comunidade irlandesa do Brooklyn e com a estóica sra. Kehoe. “Meu nome verdadeiro é Antonio Giuseppe Fiorello”, confessa depois, mostrando-se sinceramente apaixonado por Eilis, que desconfia dos sentimentos dele tanto quanto de seus próprios.

Em companhia de Tony ela sai do Brooklyn pela primeira vez em cinco meses — vão a Manhattan ver Cantando na chuva. Esperava encontrar sem dúvida algum charme, lojas mais elegantes, gente mais bem vestida, “um ambiente menos lúgubre”. Em princípio não vê a menor diferença entre os dois grandes distritos, “a não ser pelo frio, que ela achou mais rigoroso e mais seco, e pelo vento mais violento na hora em que saiu do metrô”.

O namoro com Tony insinua uma série de aculturações triviais, como no episódio em que ele a leva à praia. Dizia-se que os italianos haviam trazido para os EUA o hábito de ir à praia com os trajes de banho por baixo da roupa, evitando assim o costume irlandês de trocar de roupa na praia, o que os descendentes de irlandeses consideravam deselegante e grosseiro, “para dizer o mínimo”.

Constava ainda que todo italiano dava muita importância à aparência de sua namorada na praia, “por mais perfeita que ela fosse em outros aspectos”. Na Irlanda, ninguém olhava, pois isso era tomado como falta de educação. Na Itália, ao contrário, falta de educação era não olhar. Tony, por sua vez, não se conformava com o fato de que na Irlanda não se jogava beisebol (ele é fanático torcedor dos Dodgers).

Enquanto os italianos viam os irlandeses como sovinas e miseráveis em qualquer circunstância, os irlandeses tinham dificuldade de adivinhar o caráter de uma pessoa com base no seu tipo de trabalho, como acontecia em Enniscorthy; e a personalidade forte de Tony intrigava Eilis. Em um de seus fluxos de consciência, Tóibín sugere, para desconforto da protagonista: “Tony era tal como se mostrava a ela; não existia nenhum outro lado dele”.

A anti-heroína
Numa das mais belas cenas do livro, Eilis se entrega a Tony de um modo perturbadoramente sóbrio. A cena é valorizada pela narração suave e prudente de Tóibín:

Na segunda vez, a dor foi ainda pior do que antes, como se ele estivesse batendo em algo dentro dela, algo que foi ferido ou cortado. De novo, quando pressionou mais fundo, Tony pareceu perder a consciência de que estava com ela. E aquela sensação de que ele estava além dela fez Eilis desejá-lo mais ainda, fez sentir que aquilo e a lembrança daquilo mais tarde seriam o bastante para ela e teriam mais importância do que qualquer outra coisa que havia imaginado.

Eilis não vislumbra reviravoltas nem confrontações; atende aos apelos externos sem entregar-se decididamente. Com o tempo, porém, o namoro, o cotidiano, as cartas, as superficialidades, a ausência de um sentido amplo, a confusa expatriação, enfim, começam a pesar. Casa-se com Tony, então, de papel passado e sem testemunhas, mais pela esperança de um ordenamento das emoções que pelo vislumbre de um futuro feliz a dois.

Seu deslocamento é agravado pela notícia perturbadora da morte de Rose, momento em que Eilis, pela primeira vez, verbaliza a idéia nuclear de Brooklyn: “Eu gostaria de nunca ter vindo para cá”. A quarta e última parte do livro, que trata do retorno de Eilis a Enniscorthy em função daquela perda, parece um conto, tamanha a sua independência em relação ao restante da obra.

Curiosamente, a mãe não pergunta nada a Eilis sobre a sua vida nos Estados Unidos e nem mesmo sobre sua viagem de navio dos EUA à Irlanda. Limita-se a comunicar-se com a filha como se estivesse “hostil a qualquer tipo de réplica”. Os contatos com amigos de longa data vão revelar um pouco do que a imatura Eilis se tornou (ou deixou de ser). Ela acha graça ao ver como as sungas dos rapazes na praia são apertadas e deselegantes. “Nenhum americano seria visto na praia com uma roupa assim. E dois homens jamais andariam em Coney Island tão despreocupadamente, parecendo não prestar a menor atenção às duas mulheres que os observavam correr na frente.”

Jim Farrell, que esnobava Eilis nos bailes da cidade, agora se mostra claramente interessado nela. Supõe-se que ele a recusava porque a família dela não tinha posses, ao contrário da de Jim. A mãe de Eilis via Jim como um ótimo partido, um jovem que, além de tudo, tinha seu próprio negócio. “Tudo em você está diferente, não para aqueles que a conhecem, mas para as pessoas da cidade que só a conheciam de vista”, comenta a amiga Nancy.

Inebriada pela proposta de casamento feita por Jim, Eilis precisa fazer um esforço para se lembrar de que está casada com Tony, que em breve ia ter de encarar o calor escaldante do Brooklyn, a rotina maçante na loja Bartocci’s e seu apertado quarto na pensão da sra. Kehoe. Na visão da protagonista, Jim era atraente e bom, mas conservador. Para poder se casar com ele, teria de falar sobre o casamento com Tony e, se fosse o caso, divorciar-se. Mas a única pessoa divorciada que os moradores de Enniscorthy conheciam era Elizabeth Taylor. O que fazer, então? A escolha, ao final, é difícil e dolorosa.

Em Brooklyn, Colm Tóibín — autor do excelente O mestre, que recria aspectos da vida de Henry James, e de Mães e filhos — lida de novo com o persistente tema da tentativa de manutenção da identidade irlandesa em terra estranha. Apesar de modesto e sem uma trama forte, a obra é ressonante. Sua prosa delicada e meticulosa insinua mais do que revela, e os personagens, uniformemente circunspectos, evocam mais do que declaram.

Narrado de um ponto de vista semi-onisciente, a narrativa refrata a perspectiva de Eilis, resultado que não deve ter sido fácil atingir. Burilar uma história longa como esta (excessivamente longa, eu diria) dentro da mente de uma anti-heroína sem brilho requer uma carpintaria distinta, em comparação com as exteriorizações poéticas de O mestre. A estrutura se sustenta pela absoluta ausência de sentimentalismo e de armadilhas de linguagem, permitindo que a clareza do projeto literário (e nada mais) se imponha.

Brooklyn
Colm Tóibín
Trad.: Rubens Figueiredo
Companhia das Letras
302 págs.
Colm Tóibín
Nasceu em Enniscorthy, Irlanda, em 1955. É escritor, jornalista e crítico literário, autor de A luz do farol, Mães e filhos, O mestre e História da noite, entre outros. Vive em Dublin.
Sergio Vilas-Boas

É escritor e jornalista. Autor de Perfis, entre outros.

Rascunho