Tipologia do escritor

As várias maneiras de “enquadrar” os diversos tipos de autores que flanam pela vida literária
Ezra Pound, autor de “Os cantos”
01/07/2011

O poeta e tradutor Ezra Pound gostava de ver o circo pegar fogo. Intelectual-bandido. Quando lhe pediam um balde de água pra apagar o incêndio, ele logo aparecia com um balde de gasolina. Promovedor implacável do modernismo, Pound detestava a modernidade, odiava a falência política, econômica e cultural de seu tempo. O tema de seu longo poema, Os cantos, é a usura e a fragmentação que ela provoca no indivíduo e na sociedade. Grande agitador, Pound era por vezes egocêntrico e irresponsável (flertou com Mussolini e se deu mal). Gostava de criar personas literárias (Hugh Selwyn Mauberlay), de corrigir os poemas alheios (A terra desolada). Entre os intelectuais, seu lema logo se tornou célebre: make it new, renovar. Divisa que ecoa o Zaratustra, de Nietzsche: o sujeito criativo é antes de tudo um renovador de valores.

Na obra de Pound, sua própria poesia e a tradução da poesia alheia, principalmente dos clássicos do Ocidente, eram atividades entrelaçadas. Também a reflexão sobre a literatura e sua história participava dessa liga. Seus artigos de crítica literária são lidos até hoje. Teoria e prática se misturavam naturalmente, sem crise, na vida do intelectual-bandido. Das muitas provocações do Pound-crítico-de-literatura, quem não se lembra de sua controvertida classificação dos escritores, apresentada no ABC da literatura? Para ele, os escritores dividiam-se em seis categorias: a dos inventores, a dos mestres, a dos diluidores, a dos bons escritores sem qualidades salientes, a dos beletristas e a dos lançadores de moda.

1. Inventores: escritores que descobrem um novo processo literário ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de determinado processo literário, rompendo com as convenções. Originalidade é o adjetivo mais usado pela crítica especializada ao analisar a obra desses gênios.

2. Mestres: escritores que combinam certas características dos tais processos mencionados acima e as usam tão bem ou melhor do que os inventores. Um pouco mais fácil do que criar um processo absolutamente original é fazer uso do processo criado por um inventor. Por isso mesmo, muitos mestres conseguem usar determinado processo com muito mais desenvoltura do que o inventor que o criou.

3. Diluidores: escritores que absorvem certas idéias dos inventores e dos mestres, mas não são capazes de realizar tão bem o trabalho literário. Daqui pra baixo o adjetivo originalidade será pouquíssimo usado. Mesmo que a obra dos diluidores pareça algo original para a maioria dos leitores, isso significa apenas que esses leitores, por falta de familiaridade com a cultura mais sofisticada, jamais tiveram acesso à obra dos inventores e dos mestres.

4. Bons escritores sem qualidades salientes: escritores que se mantêm dentro das convenções, sem se preocuparem com as grandes questões literárias. A grande maioria dos escritores conhecidos e desconhecidos.

5. Beletristas: escritores que não inventaram nada nem aprimoraram nada, mas se especializaram em determinada particularidade da arte de escrever.

6. Lançadores de moda: escritores que trabalham apenas com o gosto médio dos leitores e se mantêm na moda por algum tempo, mesmo que esse tempo seja razoavelmente longo.

O exercício mais divertido em festas literárias chatas, depois que as melhores piadas já foram contadas, é procurar ao redor os tipos de escritor propostos por Pound. O circo pega fogo. Fulano é um diluidor de marca maior. Beltrano não passa de um beletrista oportunista. Sicrano? Ah, esse é só mais um lançador de moda, em dez anos ninguém mais lembrará dele.

Mas a classificação dos escritores proposta pelo autor de Os cantos não precisa ser a única. Eu mesmo andei pensando em outra maneira de ordenar os escritores daqui e de fora. Meus critérios são um pouco diferentes dos de Pound. Primeiro dividi os escritores em três conjuntos: iniciantes, maduros e veteranos. Depois dividi cada conjunto em dois grupos: talentosos ou sem talento, bem-sucedidos ou mal sucedidos comercialmente. Vamos ver como ficou?

1a. Escritor Iniciante Talentoso Bem-Sucedido: o primeiro livro cai imediatamente no gosto do grande público e da crítica. Sucesso de vendas, resenhas positivas, prêmios literários.

1b. Escritor Iniciante Talentoso Mal Sucedido: o primeiro livro cai imediatamente no gosto apenas da crítica. Fracasso de vendas, resenhas positivas, prêmios literários.

1c. Escritor Iniciante Sem Talento Bem-Sucedido: o primeiro livro cai imediatamente no gosto apenas do grande público. Sucesso de vendas, resenhas negativas ou nenhuma resenha, nenhum prêmio.

1d. Escritor Iniciante Sem Talento Mal Sucedido: o primeiro livro não desperta o interesse de ninguém. Fracasso de vendas, nenhuma resenha, nenhum prêmio.

2a. Escritor Maduro Talentoso Bem-Sucedido: os livros continuam agradando o grande público e a crítica. Sucesso de vendas, mais resenhas positivas, mais prêmios literários.

2b. Escritor Maduro Talentoso Mal Sucedido: os livros continuam agradando apenas a crítica. Fracasso de vendas, mais resenhas positivas, mais prêmios literários.

2c. Escritor Maduro Sem Talento Bem-Sucedido: os livros continuam agradando apenas o grande público. Sucesso de vendas, mais resenhas negativas ou nenhuma resenha, nenhum prêmio literário.

2d. Escritor Maduro Sem Talento Mal Sucedido: os livros continuam desagradando todo mundo. Fracasso de vendas, nenhuma resenha, nenhum prêmio.

3a. Escritor Veterano Talentoso Bem-Sucedido: os últimos livros continuam agradando o grande público e a crítica. Sucesso de vendas, mais resenhas positivas, mais prêmios literários.

3b. Escritor Veterano Talentoso Mal Sucedido: os últimos livros continuam agradando apenas a crítica. Fracasso de vendas, mais resenhas positivas, mais prêmios literários.

3c. Escritor Veterano Sem Talento Bem-Sucedido: os últimos livros continuam agradando apenas o grande público. Sucesso de vendas, mais resenhas negativas ou nenhuma resenha, nenhum prêmio literário.

3d. Escritor Veterano Sem Talento Mal Sucedido: os últimos livros continuam desagradando todo mundo. Fracasso de vendas, nenhuma resenha, nenhum prêmio.

Aí estão doze possibilidades que realmente dão o que pensar. Para quem escreve poemas, contos e romances, não resta dúvida de que a possibilidade A de cada conjunto, reunidas, é o verdadeiro paraíso na Terra. Imagine só: você, o queridinho do grande público e da crítica a vida toda, vendendo milhões de exemplares, escutando elogios de todas publicações, recebendo todos os prêmios incluindo o Nobel. Em compensação, a possibilidade D de cada conjunto, reunidas, é o verdadeiro inferno na Terra. Duvido até que exista um autor que pertença a essa categoria. Pensando bem, duvido que exista um único exemplo dos dois tipos de escritor: o vencedor e o perdedor vitalícios. A natureza não produziria aberrações assim.

Minha tipologia do escritor parece ser mais apropriada para um saboroso exercício permutativo. Na festa literária chata, depois que as melhores piadas tiverem acabado, o mais divertido será procurar ao redor, por exemplo, o Escritor Iniciante Talentoso Bem-Sucedido que hoje é o Escritor Maduro Talentoso Mal Sucedido, e debochar de sua decadência (espero que ele não seja você). Ou o Escritor Iniciante Sem Talento Mal Sucedido que em seguida tornou-se o Escritor Maduro Sem Talento Bem-Sucedido e hoje é o Escritor Veterano Talentoso Bem-Sucedido. Sim, ele existe. No esporte e na literatura, milagres acontecem.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho