Assumindo a Biblioteca Nacional

Desenvolverei um inovador programa de leitura, incentivarei construção de bibliotecas, estimularei a indústria do livro
Vista interna da Biblioteca Nacional, localizada no centro do Rio de Janeiro
01/07/2011

15.09.1990
Telefona-me Ipojuca Pontes, secretário de Cultura da Presidência no governo Collor, para, amigavelmente, me dizer que vai mandar uma carta-resposta ao comentário que fiz numa crônica no JB sobre a ausência de projeto cultural deste governo.

29.09.1990
Araken Távora, do Projeto Encontro Marcado/IBM, que leva escritores a todo o país, havia telefonado há dias dizendo que conversou com pessoas em Brasília sugerindo (por sua conta e risco) que eu deveria ser o Secretário de Cultura do governo federal no lugar do Ipojuca. Achei que era brincadeira e respondi ao telefone que só se ele fosse meu chefe de gabinete. Agora, telefonam-me assessores do governo em Brasília. A coisa me incomoda. Em raros momentos, fico feliz com a idéia. É uma mudança muito radical na minha vida: abrir mão da crônica semanal no jornal, da viagem à Dinamarca, do estágio em Arles, alterar a vida doméstica. Logo agora que quero me dedicar à escrita! Por outro lado, positivamente, vejo: a) poder testar idéias e projetos; b) matar de inveja inimigos.

07.10.1990
Continua rolando a coisa de Secretário da Cultura. Consulto uma pessoa e outra. Confidências. Gente entusiasmada. Mas há problemas. Se o presidente me chamar indago: “O que espera de mim?”. E depois: “Que condições de trabalho terei?”. Problema: pegar um abacaxi, correr o risco de desmoralização e ainda ganhar mal.

19.10.1990
Ando abatido com o governo Collor. Eu e muita gente. O governo parecia ir tão bem, de repente, o estapafúrdio romance Zélia (ministra da Fazenda) com Cabral (ministro da Justiça). Chacota na imprensa internacional. (…) Por essas e por outras que esse papo de Secretário de Cultura fica cada vez mais absurdo. Ainda ontem me convidaram da Biblioteca Nacional para participar de um depoimento pelos 180 anos da mesma. Era seu aniversário. Estavam também Ipojuca Pontes, Joaquim Falcão e Aspásia Camargo e outros. O clima de politicagem não me faz bem. Eu ali diante do Ipojuca já tendo sido sondado para substituí-lo, além do Joaquim Falcão que também o foi, como me disse há dias, enquanto me confidenciou que a candidata dele era a Aspásia Camargo, que estava ali.

24.10.1990
Convidam-me para me encontrar com um representante do governo federal no lançamento da biografia da Fernanda Montenegro (escrita por Lucia Riff). Estava todo mundo do teatro lá. Walmor Chagas na fila de autógrafos conversa comigo querendo saber “como estão as coisas” na Secretaria da Cultura. (O Araken já espalhou para umas vinte pessoas). O representante do governo saiu para jantar conosco no Satiricon. O jantar foi surrealista e desagradabilíssimo. Ele me conta que João Santana, da Secretaria de Administração, já namorou a Zélia e que Collor deu um murro na cara do Renan Calheiros, há anos, por ocasião de uma disputa pela prefeitura de Maceió.

06.11.1990
Ipojuca me telefona na quinta-feira de manhã para me propor dirigir o Instituto Brasileiro Arte Cultura – Funarte (Ibac), que concentra a área de música, teatro, artes plásticas, gráfica, folclore, cinema, etc. Estranha coincidência. Marchas e contra marchas. Pedi tempo para pensar. Ele com pressa. Passei o feriadão em Friburgo angustiado, aquilatando com Marina (…) Ontem, Ipojuca me chama no meio de um seminário na Federal, para reafirmar seu convite. É a terceira ou quarta vez que telefona. Hoje dia 6, o Informe o JB dá essa nota: “ NÃO!” Consultado pelo governo Collor, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna repetiu o gesto da atriz Fernanda Montenegro ainda nos tempos de Sarney, Disse “NÃO”. À tarde, a imprensa começou a pressionar: O Globo, JB, Folha. O JB dizendo que Teresa Rachel telefonou para lá para desfazer o mal-entendido, afirmando que eu já havia aceitado o Ibac. Joaquim Falcão vem de Brasília e me diz: “Te aconselho a não se entusiasmar porque o Mario Machado já está nomeado e está há uma semana escolhendo a diretoria do Ibac”.

15.11.1990
Deu numa das colunas: “Affonso Romano de Sant’Anna decidiu ontem abrir mão de sua indicação para a presidência do Ibac, órgão mais poderoso da Secretaria de Cultura, para o qual fora convidado na semana passada pelo secretário Ipojuca Pontes. — Senti que estava caminhando sobre areia movediça”. Querendo fazer graça, Alfredo Ribeiro (Tutty Vasques) diz no Informe JB que depois de recusar a Secretaria de Cultura e o Ibac, vou acabar gerenciando o CEP 2000.

20.11.1990
Telefona Paulo Melo, da Secretaria de Cultura, para me convidar para ocupar a presidência da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e do antigo Instituto Nacional do Livro (INL). Pedi os dados pelo fax. Desta vez aceitei. Agora eu e o I Ching estaremos em paz. Desenvolverei um inovador programa de leitura, incentivarei construção de bibliotecas, estimularei a indústria do livro. Agora, sinto-me no meu lugar. Aguardarei em sigilo a indicação, mas minha cabeça já disparou a funcionar. Transformar o prédio, ah! o belo prédio que adolescente em visitei encantado em um centro cultural de primeira ordem. Acho que agora minha alma pode repousar de tantos tumultos nesses dias. Vamos em frente.

14.06.2011
Releio essas anotações feitas há 20 anos. Nestes dias, estou lançando Ler o mundo (Global), onde conto outros detalhes da peripécia lírica e patética que foi administrar a FBN por seis anos (1990-1996), passando por seis ministros da Cultura e três presidentes.

Affonso Romano de Sant'Anna

É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, entre outros. A coluna Quase diário foi publicada no Rascunho até fevereiro de 2017.

Rascunho