A novela O invasor, de Marçal Aquino, produzida também para o cinema, oferece um bom material para a discussão da relação da sétima arte com a literatura. Como sinaliza Tony Bellotto, “vale o alerta: cuidado com as prosas aparentemente simples e as novelas enganosamente curtas. Elas podem ser uma armadilha para enredar o leitor numa grande história”.
Trata-se de uma narrativa focada na ação de personagens que vão sendo construídos sem maiores desperdícios com descrições ou insinuações simbólicas. A tensão entre uma realidade social, aparentemente organizada, e um mundo-cão que a sustenta estabelece o suspense e as surpresas presentes o tempo todo, como armadilhas instigantes. A estrutura dos quinze capítulos da novela é uma montagem de fragmentos. Estes, apesar dos cortes, através da ação e da temática mantêm uma coesão interna, entre si.
Aloar, Ivan e Estevão são três velhos colegas de faculdade, sócios de uma promissora firma de engenharia. Todos casados, com famílias constituídas, filhos, mulheres etc. Em determinado momento, a partir de uma divergência sobre a condução dos “negócios”, Aloar e Ivan contratam Anísio para matar Estevão, o sócio majoritário que os ameaçava excluir da sociedade. Anísio, o matador de aluguel, invade a vida dos dois sócios mandantes do crime, a firma e esta história como um detonador de todos os planos e projetos anteriores, outorgando-se o direito de participar dos privilégios dos demais. A invasão é devastadora e põe o dedo nas feridas e hipocrisias dessa sociedade. Negociatas, prostituição, crimes, traições, medos, perseguições e até amor são vivenciados por personagens e tipos que transitam vertiginosamente pelo texto.
A narrativa é escrita num tempo linear, com raras digressões psicológicas, a não ser aquelas estritamente necessárias para garantir a expressão de paranoias e de delírios de um personagem atormentado pela rede de intrigas na qual se envolveu. Ivan é o personagem-narrador, e sob este foco tudo transcorre. Seu ponto de vista coloca-o no centro da intriga a ponto de nos surpreender com sua inadequação ao sistema no qual está inserido, mas que parece engoli-lo até torná-lo um verdadeiro “intruso”. Diferentemente dessa perspectiva, o filme conta com focos narrativos diversos, inerentes ao cinema, como câmeras, imagens, jogos de luz e sombra, ruídos e silêncios, trilha sonora, expressão corporal e interpretações dos atores, além do olhar de um diretor que estabelece prioridades, cortes e inclusões criativas. Neste sentido, a construção dos personagens é bem diferenciada. Na ficção literária, Ivan, com suas paranoias, medos e paixões, está num primeiro plano, enquanto no filme sua importância de protagonista é diluída entre os demais. O seu apaixonado olhar sobre Paula, por exemplo, garante que a verdadeira máscara da amante só se revele como surpresa no final. Enquanto no filme, ela se apresenta como uma personagem previsível desde os primeiros momentos.
Podemos observar que a mesma boa história toma forma diversa a partir da escolha da linguagem que a narra. Não se trata, portanto, de definir um juízo de valor comparativo entre as duas produções. Uma forma não é melhor que a outra, ambas são criações artísticas de naturezas diferentes e, como tal, precisam ser lidas. Ao mesmo tempo, pode-se observar o alto grau de “contaminação” de uma forma de linguagem sobre a outra. Essa contaminação pode ser observada, por exemplo, na dedicatória do livro: “Em memória de Mauro Mateus dos Santos, o Sabotagem (1973-2003)”. Este tem um papel significativo no filme com sua música de fundo e sua participação enquanto personagem. No livro a homenagem da dedicatória resgata sua importância, não tão explícita no interior do texto literário.
Poderíamos dizer que o roteiro para o cinema foi “adaptado” para ficção literária com sucesso, se o termo “adaptação” coubesse aqui. Tudo se tornou possível a partir de uma boa história esboçada por um autor, com domínio criativo nas duas linguagens, e a perfeita parceria com um cineasta apaixonado pela literatura, como Beto Brant (diretor do filme). Embora, enquanto produto final, o filme tenha vindo a público primeiro que o livro, as duas produções se realizaram quase que simultaneamente.
Aquino enfatiza em suas entrevistas a prioridade que dá a uma boa trama, secundarizando a perspectiva experimentalista da linguagem. O fato é que nenhuma boa trama torna-se narrativa literária ou cinematográfica sem uma boa articulação da linguagem. Não serão as escolhas estéticas, como simplicidade vocabular, a ação sobrepujando a descrição e a síntese na construção textual, exercícios de experimentação da linguagem? Quem sabe possamos aprofundar essa discussão com a leitura do romance Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino, e o filme que está sendo produzido baseado nessa boa trama. Bem, mas isso é uma outra história, e que fica para uma outra vez.