O olho que sente

"Sardenha como uma infância" é obra da juventude do autor que se consagraria com Conversa na Sicília
Elio Vittorini, autor de “Sardenha como um infância”
01/07/2011

Eu sei o que é ser feliz na vida — e a dádiva da existência (…) é com essas palavras que Elio Vittorini inicia o livro-diário, fruto de sua viagem pela ilha italiana da Sardenha, em 1932, organizada pela revista Italia Letteraria, num concurso de literatura e jornalismo. Sardenha como uma infância, traduzido por Maurício Santana Dias, que cada vez mais faz a ponte entre Itália e Brasil, e publicado pela Cosac Naify, é essa espécie de diário fragmentado. Notas de viagem e apontamentos vários captados diante de uma paisagem e de visões únicas proporcionadas pela geografia e cultura singulares da Sardenha. A dimensão e o estar numa ilha são muito bem conhecidos por Elio Vittorini, originário da Sicília, a outra grande ilha italiana. Talvez seja por isso que esse “eu-nós” dos vários fragmentos que compõem o livro, no total de 43, sinta-se tão bem e à vontade nesse espaço a ser descoberto.

Essa voz narrante, caracterizada por uma alegria de ver coisas novas, semelhante a um olhar que se encanta pela primeira vez, permeia toda a narrativa desse volume. É o jovem Vittorini e não aquele mais engajado e símbolo de toda uma geração como será em Conversa na Sicília e Homens e não, textos mais maduros quando ele já é um personagem atuante, conhecido e influente do panorama cultural italiano, por meio das traduções e dos trabalhos para grandes editoras. Jovem que está descobrindo o mundo, nesse caso a Sardenha, e a si mesmo: “E não sei o que se passa em meu rosto nessas minhas felicidades, quando sinto que se está tão bem na vida (…) Não somente o mar ou somente o sol e não somente uma mulher e o coração dela sob os lábios. Também terras! Ilhas!”.

Uma viagem feita em grupo ao lado de outras pessoas para um concurso literário que desbrava essa terra “misteriosa”, com seus segredos e vozes tácitas. Esse grupo só é nomeado genericamente ao longo dos muitos flashes narrativos: “Agora estamos em dois carros pequenos, porque o grande não passaria; eu me instalo no que segue à frente” e, ainda, “Assim que a rua se libera do funeral, vejo vários do nosso grupo passeando para cima e para baixo”. Um estar junto que é ao mesmo tempo um estar só; como se a totalidade do grupo só existisse na individualidade de cada componente que sente, vive aquela experiência de (re)descoberta.

Impressões, talvez seja essa a melhor palavra para definir esses fragmentos de Vittorini que compõem esse caderno de viagem. Há ao longo do livro indicações geográficas — Terranova, Altiplano da Gallura, Tempio, Anglona, Sassari, Macomer, Nuoro, Oliena — que às vezes acompanham os algarismos romanos na indicação dos capítulos; contudo, dessas zonas por onde esse “aventureiro” passa, não há grandes descrições detalhadas ou que visem captar um elemento qualquer específico. Como coloca Georges Didi-Huberman: “O que vemos só vale — só vive — em nossos olhos pelo que nos olha”. Em vários momentos, é como se esse grupo e, em particular, esse “eu” que olha e observa estivessem sozinhos nessa geografia. No capítulo 12, esse estado solitário é confirmado tanto no episódio do carro que não buzina porque não encontra outros pelo caminho tanto quando é colocada mais diretamente a questão da solidão, que está ali em cada coisa. Solidão que, certas vezes, é acompanhada do silêncio “um duro e áspero silêncio”. Solidão, impressão marcante dessa terra a ser explorada, que é repetida várias vezes por esse “eu” que anda em grupo, mas também está sempre só: “O que mais me impressiona é a solidão imóvel daquela vela; lembra séculos de existência primitiva; o que me dá o primeiro presságio seguro sobre o caráter desta terra”. Um isolamento que é dado pela própria constituição geográfica dessa paisagem e que pode remeter à terra natal de Vittorini, que goza da mesma constituição e possui uma relação parecida com o continente: comunicação e isolamento.

Viagens
Impressões de viagem. Viagem como curiosidade, vontade de conhecimento de explorar. Viagem que pode levar, ainda, ao retorno de algo já conhecido e experimentado no passado. O olhar que caracteriza as leituras dos encontros entre o “eu” e as coisas, a natureza, as aldeias, as cidadezinhas, os homens, é como se fosse aquele da criança, perfilado, como coloca Walter Benjamin, pela curiosidade e pela vontade da descoberta. É um olhar, portanto, projetado para fora de si, mas que, ao mesmo tempo, identifica nos espaços objetos e situações que fazem parte de uma bagagem. A hospitalidade, por exemplo, encontrada em Tempio, vista como uma característica “dos povos que permaneceram primitivos de coração” pode ser uma particularidade também identificada no comportamento dos sicilianos.

E aqui se abre um outro aspecto fundamental dessa breve narrativa: o reencontro com o própria terra, mesmo não estando nela. Com efeito, o Vittorini que lê o território sardo o faz por meio dos olhos da infância e da juventude, através das lentes sicilianas. “(…) as mulheres de minha infância de guerra na Gorizia, que circulavam assim em seus afazeres sob o céu que sibilava (…)” são apenas um exemplo mais direto das rememorações do autor, que passam a ser corroboradas, ainda nesse capítulo 5, em Terranova, quando são mencionadas as cebolas e os tomates, como os alimentos mais comuns à venda. As feiras da Sicília, os figos-da-índia, as laranjas, as oliveiras e outros elementos estão ao lado dos “Eucaliptos! Havia três em um sítio aonde eu fui na infância”.

Uma viagem que termina, tem um ponto de partida e um ponto de chegada nos deslocamentos, porém, como afirma o narrador, é um acontecimento: “uma espécie de guerra dentro de mim, ou um amor, que não poderá repetir-se (…) Como uma infância. E agora já faz parte da minha infância, daquele nada, daquela fábula”. Um itinerário físico e simbólico, como é a narrativa de Vittorini, que não se esvai, mas sim que permanece.

Sardenha como uma infância
Elio Vittorini
Trad.: Maurício Santana Dias
Cosac Naify
128 págs.
Elio Vittorini
Nasceu em Siracusa, em 1908. Começa como colaborador nas revistas culturais e literárias italianas das décadas de 1920-30. Seu romance mais conhecido e aclamado pela crítica é Conversa na Sicília (1941), cronologicamente seguido de Homens e não (1945), que traz para a literatura uma leitura da luta da resistenza no pós-guerra italiano. A atividade de agitador e mediador cultural marca um segundo momento da trajetória do autor, já reconhecido pela crítica. Será responsável por várias publicações, como a edição milanesa do jornal de esquerda l’Unità, funda Il Politecnico, com uma nova proposta de renovação intelectual e artística independente de partidos políticos. É desse período, meados da década de 40, a polêmica com os dirigentes do Partido Comunista. Na Einaudi, uma das maiores editoras italianas, além do Il Politecnico, fundou a coleção I Gettoni, que será uma publicação interessada na novas gerações e com Italo Calvino dirigiu a revista Il Menabò. Morreu em Milão, em 1966.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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