A imagem da capa, em tinta a óleo executada pelo próprio Rodrigo de Souza Leão na tela A morte do saci, exibe a cabeça de alguém sentado, pronta para explodir. A figura e a bomba são embaladas pelos tons vermelho e carmim, sangue e vida que unifica o corpo e sua morte iminente numa coisa só. É esta a primeira sensação da leitura de Me roubaram uns dias contados. O raciocínio corre rápido demais ao acompanhar a lucidez frenética e amalgamada do escritor, e fica a ponto de explodir, de modo que às vezes torna-se imprescindível fechar um pouco o livro até que a atividade cerebral se normalize. A leitura do texto em velocidade permite ao leitor experimentar a sensação e os sintomas da própria esquizofrenia, ao tempo em que se pode reparar a profunda consciência do autor por conseguir mostrar exatamente isso ao leitor.
O livro de estréia de Rodrigo de Souza Leão foi Todos os cachorros são azuis, de 2008. Publicado pela 7Letras e premiado pela bolsa Petrobrás, foi finalista do Prêmio Portugal Telecom 2009, pouco antes da morte de seu autor. Nesse primeiro livro, podemos ver o rico mundo imagético de Rodrigo, a mescla de fantasia e realidade, o enfoque único de alguém que experimentou todas as nuances de uma internação psiquiátrica. Ao tempo em que promove um resgate da infância proibida aos adultos, conjugando imaginação prodigiosa a um humor ácido e essencial, Rodrigo leva o leitor a constatar as atrocidades que foram (e continuam sendo) feitas em nome de uma suposta “normalidade” padronizante do comportamento social esperado.
Diferentemente de sua primeira obra, o segundo livro do autor, publicado post mortem, exibe visceralmente o que é o mundo íntimo de um portador de doença mental. Como Leonardo Gandolfi e o próprio Rodrigo dizem, o livro é sobre tudo um pouco. O que importa são as sensações que vêm expostas da forma mais crua, verdadeira, assustadora e incrivelmente detalhada possível, a ponto de fazer o leitor duvidar da loucura de Rodrigo, a tirar pela verdade que se esconde no fluxo de consciência da sua narrativa. E ele mesmo sabe disso: “Sou louco lúcido. Não dá ibope ser assim”.
Rodrigo está 20 degraus acima da normalidade, acima da criatividade mediana que se distribui comedidamente à maioria das pessoas. Aliás, há quem lance mão de remédios e outras drogas para atingir justamente esse estado alterado da consciência. Nas suas frases, há algo que remete à narrativa reflexiva de James Joyce, à solidão absoluta e confronto com o próprio self da escrita profundamente existencialista de Fiódor Dostoiévski, à loucura que é viver aprisionado pelos próprios segredos, como Virginia Woolf sabia: “Pensei o quanto desconfortável é ser trancado do lado de fora; e pensei o quanto é pior, talvez, ser trancado no lado de dentro”. Talvez seja isso mesmo, e Rodrigo seja uma espécie de James Joyce à brasileira.
Ramon Mello, que assina a orelha do livro, reconhece essa condição de Rodrigo de viver “trancado para dentro”, e organizou sua obra póstuma sobretudo por considerar especialmente esse livro “um belo mergulho na condição humana (…) na dura tarefa de existir de um escritor”. A apresentação de Leonardo Gandolfi traz um recorte biográfico do escritor que notava que sua loucura poderia ser redimida através da literatura, e que sua vida — tão limitada e a ponto de se exaurir — poderia permanecer ali por ainda mais um tempo. Que ninguém se iluda com Rodrigo: um escritor que soube entrevistar outros escritores, organizar revistas, citar clássicos, descobrir talentos, usar o telefone e a internet para fazer amigos, recriar a realidade e sair de casa, algo bem difícil para pessoas com suas limitações.
O limite da razão
Em Me roubaram uns dias contados, o escritor se desdobra em vários personagens, abusa dos duplos, ficcionaliza a si mesmo. Cria narradores que brigam e discutem entre si, personagens que se rebelam com a própria história e telefonam para o escritor para reclamar. Ele pensa assim no cotidiano, ou escreveu apenas para o livro? Não dá para saber, e também não dá vontade de perguntar. Mas lembro-me que Friedrich Nietzsche já dizia que havia sempre alguma loucura no amor, e sempre um pouco de razão na loucura. Imagino que Rodrigo misturasse, em outras proporções, aquilo que todos nós já temos.
Qual o limite da razão? Em que medida nossa própria lucidez e loucura se mesclam? A depressão, as idéias fixas, a coragem de expressar certas reflexões, o retorno a pontos obsessiva e exaustivamente repetidos, o humor cortante que permeia o livro, constituem o retrato de um doente, ou são sintomas exacerbados da própria condição humana? São perguntas que o leitor não ousaria responder.
Aqui mergulhamos no velho Rodrigo, o personagem principal; no Sósia, o que escreve a vida de Rodrigo num livro de 600 páginas; em Weimar, e na sua vontade de ganhar o prêmio Guinness por falar ao telefone mais do que todo mundo. Mergulho nos anos 80, na vontade de ter um filho, nas conversas sempre inesperadas com o porteiro do prédio. Seria tudo isso inventado ou o autor somente descobriu como usar as armas da literatura com maior desenvoltura do que os escritores ordinários?
Se não dá para responder a essas perguntas, muito embora se concorde com grande parte das histórias, algumas conclusões permanecem depois de se virar a última página. Que o prato da balança oscila entre os muitos níveis da razão e pode mudar a qualquer momento com uma mísera poeira que altere seu equilíbrio. Que, às vezes, para enxergar certas verdades, é preciso estar 20 andares acima do normal. Que, quando tudo indica que você deve se matar, isso pode ser um complô maligno contra sua vida e, justamente por esse motivo, ela merece ser poupada. Que às vezes sentimos falta de sósias ou outras personas que façam o trabalho sujo por nós, ainda que isso nos custe algum aborrecimento ou desaforos. E, finalmente, que a literatura é uma arte fácil para quem sabe que sentar e escrever — intensamente, apaixonadamente, enlouquecidamente — pode ser talvez a última chance de manter-se vivo.