A busca por aquele que busca

"Dionísio em Berlim" apresenta uma história caleidoscópica, na qual a veracidade é tão vulnerável quanto a memória dos personagens
Tiago Novaes, autor de Dionísio em Berlim
30/05/2020

Dionísio era um deus de muitos nomes. Além da versão romana Baco (Baccus), também era chamado de Zagreu (o primeiro Dioniso), Dendrites, Bromios, Enorches, Eleutherios, entre outros.

De acordo com a semiótica, um nome é um signo cujo significante é a imagem da palavra e o significado é o conceito do objeto ao qual esta palavra remete. Ou seja, enquanto símbolo, índice ou ícone, o nome é a representação de uma coisa ou pessoa, mas não é a coisa ou pessoa. Advém daí a genialidade da obra Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo, 1929), do artista surrealista belga René Magritte, no qual se vê um cachimbo pintado sobre uma tela. O quadro nos lembra que a arte é sempre a representação e não o objeto em si. Entre o objeto e a sua representação se insere o olhar. É aí, nesta lacuna, que se estabelece a interpretação do observador, fazendo com que a “verdade” da obra se desdobre em tantas versões da imagem quanto são os olhos que a observam.

O enigmático romance Dionísio em Berlim, de Tiago Novaes, narra a história de um personagem ao qual também são atribuídos vários nomes. E sua história, por outro lado, é narrada através de cinco diferentes perspectivas: do turco Emin, da argentina Mercedes, da palestina Silena, do sudanês Kamal e da mexicana Agave — todos exilados estrangeiros que o conheceram, mas ignoram seu paradeiro.

Nesta sobreposição de vertentes e narrativas, o que menos importa é encontrar o “verdadeiro” Dionísio. Porque a “verdade”, enquanto linha de chegada, é muito menos interessante para a literatura do que a busca. E este é, definitivamente, um romance sobre a busca. Tanto a busca travada pelo próprio Dionísio como a busca dos outros por uma versão válida de Dionísio.

O fato de os narradores serem todos estrangeiros é uma pista para o entendimento do tópico central do livro: a questão da origem enquanto determinante do destino.

Dionísio é o protagonista contado por fora, pela voz de outros. Diz-se que ele chegou a Berlim por conta de uma tatuagem feita em suas costas quando ainda era criança. Nela, se vê a torre de radiodifusão da Alexander Platz, cartão-postal da capital alemã, para onde ele viaja vindo de Nova York, com o intuito de desvendar o mistério sobre sua própria origem. Sabe-se que nasceu na Índia e foi criado em um mosteiro no Butão. A certa altura descobre que seu pai não é seu verdadeiro pai. A tatuagem, assim espera, pode ajudar a revelar o segredo sobre a real paternidade, e o leva aos subterrâneos da noite de Berlim, onde é enredado em uma trama que envolve música eletrônica, tráfico de entorpecentes e um plano de sintetização de drogas que remonta aos nazistas e à Segunda Guerra Mundial.

Os cinco narradores são exemplos típicos do narrador não confiável, esta figura literária cuja credibilidade foi comprometida. Eles contam a sua versão da história de Dionísio, reeditando-a conforme sua própria percepção e desejo de composição dos fatos. Seus relatos são registrados por um receptor invisível, que nunca fala e parece estar atrás de Dionísio — provavelmente o alter ego do autor à procura de seu personagem: um homem que busca um homem que busca.

Busca pela origem
Tiago Novaes é bastante feliz na escolha do narrador não confiável como apresentador dessa história caleidoscópica, na qual a veracidade dos fatos é tão vulnerável quanto a memória dos personagens. Como é de praxe no uso desta figura narrativa, as narrações são todas em primeira pessoa e, ainda que se dirijam a um interlocutor imaginário, revelam-se verdadeiros monólogos interiores, descambando frequentemente para o fluxo de consciência. As informações são fragmentadas e se sobrepõem em lembranças de eventos reais, sonhados e inventados. 

Naquele instante de devaneio, já não podia atestar se o vulto brotara de um sonho ou da lembrança. Busquei invocar a sua imagem sobre o gramado. Não havia ninguém sobre o gramado. O homem misterioso, o oriental ladino, portava este poder — de evadir-se das lembranças, de circular por elas. E quem sabe não poderia reaparecer numa outra memória onde não se apresentara de início?

Essa fragilidade da memória é o fio condutor que norteia o tema central da busca pela origem, pois são as lembranças pessoais que formam o andaime da nossa identidade. O problema é que, enquanto bússola nesta busca pelo outro, a memória é falha, pois suscetível ao permanente desejo de reeditar a própria história.

Assim, Dionísio revela-se um duplo, a projeção do eu no outro, o desdobramento do idêntico no confronto com o diverso. E quanto mais são os espelhos, maior a possibilidade de distorção da própria imagem. Neste sentido, Berlim, enquanto metrópole babélica e multicultural, barulhenta e silenciosa, enquanto espaço urbano que se faz de contrastes, revela-se o cenário perfeito para as muitas máscaras pegadas ao rosto dionisíaco. Como a cidade, Dionísio é múltiplo, mas só se desvenda para quem domina a multiplicidade, a polifonia e a sobreposição das camadas de silêncio.

A cidade era feita de espaços abertos, mas também tinham criado outros lugares inacessíveis, proibidos… Agora caminhava e percebia que girava em falso, descarrilado. O entusiasmo, aquela trilha sonora que escutara até aquele dia de repente se apagava, acabara a bateria do music player e era um susto conviver com o silêncio das coisas que não diziam nada, o silêncio dos pontos de ônibus vazios, das ruas desertas, dos bipes dos códigos de barra, dos caixas automáticos, das despensas da cozinha, o silêncio das marquises, dos monumentos, das teorias difíceis, o silêncio dos banheiros públicos e dos homens que repõem o papel toalha dos banheiros públicos, o silêncio dessas turbinas das aeronaves aposentadas, o silêncio dos adolescentes com suas vozes repetitivas, incoerentes, voltadas para si, o silêncio das batinas, o silêncio sepulcral dos gases atmosféricos, do futuro, o silêncio branco das UTIs e dos legumes congelados, e todos os silêncios que se aglutinavam…

A urbanidade, enquanto aglomerado de culturas e influências, silêncios e algaravias, funciona como um prisma que, no espelhamento com a alteridade do próximo, decompõe o reflexo daquele que (se) busca, estilhaçando a sua imagem em tantas partes quantas versões de sua história. Assim, Dionísio é o próprio esboço do urbano, ele é a anonimidade por trás de tantos nomes, semelhante ao que acontece no romance cult Clube da luta (1996), de Chuck Palahniuk, ao qual, aliás, é feita uma sutil alusão no livro, pois a escola de dança da namorada cega de Zagreu leva esse mesmo nome.

Apesar da interessante pegada filosófica e do absoluto domínio dos recursos estilísticos e da linguagem de prosa poética, enquanto romance, há de se ressaltar que o livro não se desenvolve, não ocorre praticamente nenhum conhecimento novo substancial em relação à figura de Dionísio ao longo da narrativa, não há, de fato, acréscimo nem perda de conteúdo no que já ouvimos em relação a ele no primeiro monólogo, apesar das versões de sua história serem completamente distintas. Não ocorrem twists, Dionísio permanece uma ilusão ou projeção ou duplo do respectivo narrador. Em princípio, trata-se aqui, no melhor dos casos, de um romance fragmentado, construído a partir dos preceitos de uma fuga (no sentido musical do termo, como uma fuga bachiana). As falas dos cinco personagens são uma só fala em variações, o loop polifônico de um só relato, refratado em diversos ângulos. Dionísio é, a um só tempo, construção e ruína. Como Berlim.

Neste sentido, Dionísio em Berlim é Berlim em Dionísio.

Dionísio em Berlim
Tiago Novaes
Quelônio
176 págs.
Tiago Novaes
Nasceu em Avaré, interior de São Paulo, em 1979. Doutor em Psicologia pela USP e professor de criação literária, publicou Os amantes da fronteira (Dobra), Documentário (Funarte) e Estado vegetativo (Callis), entre outros. Foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura (2008), Jabuti (2014) e Oceanos (2015). De sua autoria, a Quelônio publicou Algoritmo (2017). O projeto de Dionísio em Berlim foi contemplado com um ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo de Incentivo à Criação Literária).
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

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