Instruções urgentes para sobreviver aos tempos de guerra (5)

Os ensinamentos do Dr. H. G. Clegg, feitos durante a Segunda Guerra, continuam pertinentes em tempos de pandemia
Ilustração: Beatriz Cajé
01/05/2020

No ano passado, por quatro números sucessivos desta coluna, traduzi o libreto How to keep well in wartime, de autoria do médico pneumologista Dr. H. G. Clegg, produzido sob os auspícios do Ministério da Saúde do Gabinete Churchill, no ano de 1943, em plena Segunda Guerra. Em 2019, estava claro que estávamos vivendo um cenário de guerra, ainda que as bombas nazistas não estivessem despencando sobre as nossas cabeças, como sobre as dos cidadãos londrinos de então. Essa situação alarmante foi potencializada agora sob a pandemia da Covid-19. O vocabulário de guerra já foi adotado por todos, incluindo a Organização Mundial da Saúde. Pareceu-me, portanto, a hora justa para retomar os ensinamentos e advertências do Dr. Clegg. Vamos ler o que ele diz no capítulo cinco do seu libreto.

Escolha o alimento certo. É provável que você já saiba bastante sobre os alimentos e seus valores. Um dos benefícios desta guerra é o interesse mais inteligente que todos têm mostrado pelos alimentos, graças à necessidade e aos esforços do Ministério da Alimentação. Se o seu interesse também cresceu, por favor, conserve-o assim agora e quando a paz vier. Muita desgraça tem sido causada pela falta de alimentos e pela ignorância sobre os fatos da alimentação. Milhares e milhares têm morrido por causa dessa ignorância.

“Por exemplo, no Oriente, nativos vivendo amplamente de arroz branco morrem de uma doença chamada beribéri. Isto porque a vitamina que protege contra essa doença — a vitamina B1 — é jogada fora com as cascas do arroz. Nas Filipinas perto de 18 mil pessoas morreram de beribéri em 1925.

“Cientistas e médicos não estão sendo caprichosos quando se preocupam que todos comam diariamente uma quantidade suficiente de alimentos defensivos — alimentos que justamente protegem contra beribéri, raquitismo e escorbuto. Deve estar claro de uma vez por todas que se você tiver uma dieta bem balanceada — e isso é possível mesmo durante o período de racionamento —, você não precisa se preocupar se está comendo o suficiente disto ou daquilo. Mas é preciso saber o que é ‘bom’.” E é sobre qualidade dos alimentos que o Dr. Clegg fala a seguir.

A fonte de todo a sua energia. Está ficando cada vez mais banal comparar-se o corpo humano a uma máquina, mas a comparação é útil porque muito do que se sabe sobre a maneira como o corpo funciona pode ser explicado por princípios mecânicos. Um engenheiro pode calcular que, em certas condições, um carro pode ter tal performance quando o vapor da gasolina entra em combustão nos cilindros do motor. Parte da energia liberada pela combustão movimenta o pistão e o carro ‘liga’. Parte da energia é emitida como calor e isso aquece a água no radiador.

“O combustível para a sua máquina é o alimento. A combustão ocorre dentro do seu corpo. Parte da energia liberada é usada para os seus músculos e você ‘liga’. Parte é emitida como calor e aquece o seu sangue. A quantidade de energia que dão os vários alimentos pode ser perfeitamente calculada. A quantidade de energia e calor que você produz em seu corpo podem ser medidas. E se prova facilmente que essa energia e esse calor vêm da combustão dos alimentos e de nada mais. Você não pode, por assim dizer, criar energia.” Tudo bem que o Dr. Clegg não seja nenhum Homero em matéria de símiles, mas os que emprega bastam para esclarecer o que pretende dizer. Vamos adiante.

O oxigênio também alimenta. Assim como o vapor da gasolina precisa ser misturado com o ar para ligar o carro, você precisa de ar. Para ocorrer a combustão, o oxigênio é necessário e você o obtém do ar que respira. O oxigênio do ar vai para os pulmões e passa para o sangue, que leva o oxigênio para toda as partes do corpo. Sem oxigênio — sem combustível —, o corpo não consegue funcionar e então morre.” Não é formidável o didatismo do Dr. Clegg? Ele faz as coisas parecerem tão simples que, às vezes, tomam a forma de truísmos. Adiante!

Como o corpo queima açúcar. Quando o açúcar é queimado fora do corpo, ele se transforma em água e dióxido de carbono — o gás que dá a efervescência da água frisante. Exatamente a mesma coisa acontece no corpo. O dióxido de carbono é levado pelo sangue para os pulmões e depois expirado no ar. (As plantas, por sua vez, usam o dióxido de carbono do ar como alimento para elas). Alguma água ainda é expirada pelos pulmões. Mas a água também deixa o corpo através da pele como suor, e através da bexiga e das vísceras como urina e fezes.

“A combustão do açúcar dá ao corpo um rápido suprimento de energia. Quando você faz o cérebro funcionar — lendo, falando ou ouvindo, por exemplo —, as células do cérebro queimam açúcar e por isso precisam de oxigênio. O oxigênio é levado pelos glóbulos vermelhos do sangue. Havendo poucos glóbulos vermelhos — se a pessoa é anêmica —, o cérebro não obtém oxigênio suficiente e não trabalhará tão bem.

“Portanto, em certo sentido, oxigênio é um alimento e essa é uma razão pela qual os médicos querem que as pessoas tenham o máximo de ar fresco em casas, escritórios e fábricas bem ventilados. Em algumas doenças, os médicos dão ao paciente uma quantidade extra de oxigênio para respirar.” Nem é preciso exemplificar: temos um exemplo bem claro com a preocupação atual de obter respiradores para os hospitais.

Todos necessitam amido. Açúcar e amido são o que os químicos chamam de carboidratos. Amido é um alimento importante: o ingrediente principal em pães, batatas e em todos os cereais. Durante a digestão, ele é partido em açúcar, que é uma substância química mais simples. Portanto, comer amido ou açúcar é exatamente o mesmo a longo prazo porque ambos entram no sangue pelo intestino na forma de glicose. E quando você come amido, por exemplo, na forma do Pão Nacional…” — aqui devo interromper o Dr. Clegg para explicar o que hoje não é tão conhecido como na época: introduzido na Inglaterra durante a Segunda Guerra, o “Pão Nacional” era um pão feito de farinha de trigo integral, ao qual ainda se ajuntavam cálcio e vitaminas, como forma de enfrentar a escassez de farinha branca durante a guerra. Isto posto, voltemos ao aviso do Dr. Clegg: “Quando você come amido na forma do Pão Nacional, você obtém outras coisas úteis também, como vitamina B e ferro. E das batatas você consegue Vitamina C”.

Aqui, atenção: o Dr. Clegg fala de amido e açúcar obtido em cereais e substâncias naturais. Os carboidratos só começaram a ser considerados nocivos a partir da industrialização generalizada, que os embutiu em tudo, produzindo os excessos que conhecemos. De qualquer forma, afora ter em mente que o Dr. Clegg viveu há 80 anos e desde então a Medicina e os padrões estéticos mudaram bastante, precisamos considerar também que ele conhece profundamente, no inferno dos hospitais desequipados e abarrotados de doentes, o que nós mal começamos a experimentar. No meio da guerra, quando faltam alimentos em variedade e quantidade, porções de açúcar e amido estão longe de ser um mal.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho