A voz necessária

Em "sereia no copo d’água", de Nina Rizzi, uma “voz” se torna a protagonista dos poemas
Nina Rizzi, autor de “sereia no copo d’água”
30/04/2020

Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu primeiro historiador, o rapsodo do livro XII da Odisseia, não conta como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem; para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e da metade para baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica), “metade mulheres, metade peixes”.

No trecho acima, extraído do Livro dos seres imaginários (1957), de  Jorge Luis Borges, com colaboração da historiadora Margarita Guerrero, é possível visualizar algumas das mutações pelas quais a ideia de sereia passa. A Odisseia de Homero conta que as sereias eram monstros com uma voz tão linda que, ao escutá-las, os navegantes eram atraídos para sua ruína. Para conhecer o canto e sair ileso, Odisseu arquiteta um plano: ordena aos seus tripulantes que tapem os próprios ouvidos com cera e o amarrem ao mastro. Na tentativa de atraí-lo, as sereias oferecem a Odisseu todo o conhecimento do mundo, mas, amarrado, ele apenas segue com sua embarcação.

Em sereia no copo d’água, quinto livro de poemas de Nina Rizzi, poeta, historiadora, tradutora e editora na revista escamandro, não é possível falar de uma voz encantatória e dessubstancializada, como a das sereias. Nota-se, em vez disso, uma fala a produzir presença.

No poema que também dá título ao livro, na primeira estrofe:

leio ‘change diapers’
cada verso me detém tua visão bebê nadador
— nadadora? nunca terá um sexo que te definha
o índio gerônimo me aparece enquanto agonizo tua visão
                                                                      [antes da queda

Rizzi cita o poema do beatnik Gary Snyder, no qual um homem troca as fraldas de um bebê, enquanto este olha fixamente para o pôster do índio Gerônimo na parede, segurando uma espingarda. No final, o homem diz ao bebê algo como “fique tranquilo, todos aqui somos homens”. No poema de Snyder, essa fala parece querer tranquilizar o bebê, que não tenha vergonha das fraldas trocadas ali, pois não há moças no recinto.

Mas o que fica evidente é que menino, homem que troca fralda e homem no pôster, estão postos no mesmo lugar, “ser homem” é imediatamente “ser humano”, ocupar um lugar de suposta universalidade. Voltando ao poema de Rizzi, a referência feita à troca de fraldas antecede um cenário difícil de aborto, “me foge água, sangre/ pedaços entre as pernas”. Change diapers não contém um apelo trivial para o bebê, “fique tranquilo, somos homens” é uma espécie de suspiro aliviado de quem sabe falar de um lugar mais cômodo, acostumado a nomear o mundo e tomá-lo como seu. O que é dito e o lugar de onde se fala não diz respeito apenas a emitir palavras. Está implicado com a possibilidades de existir e a produção de presença.

Estranhar a voz
No poema onde estaes, negra?, ao literalizar a fala, como se pregasse a voz na página, Nina Rizzi enfatiza o estranhamento quando faz a voz apontar para si mesma: 

sei escrevê e sei dizê a boa língua sim
mas bão é assim fagulha na língua
português gostoso sem contrato e casamento

Em Vaga carne, peça teatral escrita e encenada por Grace Passô, a personagem é uma voz e o cenário, um corpo de mulher. A voz tenta nomear e descrever as coisas, dizer como é estar viva, ser matéria. “Nunca fiz tanto esforço, é como ser um navio e minha voz é a tempestade.” Como a personagem é uma voz, os movimentos do corpo no palco podem se fazer contraditórios à fala. Quer dizer, os movimentos que a voz empreende no corpo são como novos, destituídos de uma lógica ou da obrigatoriedade de ilustrar o que se diz. O que possibilitou, segundo Passô, uma forma não cotidiana de estar em cena. Também é de Grace Passô a adaptação da Medeia que, em lugar de matar os filhos, tenta convencer suas filhas a matarem o pai.

A voz da Medeia, de Passô, parece comparecer no poema sortilégios para matar o meu benzinho, de Rizzi. Neste poema, uma criança observa os movimentos do pai na casa, que fala alto e “tem um cheiro forte de álcool”. Enquanto ouve “os choros abafados de mamãe/ o som surdo dos punhos de papai em suas costas e o engasgo”, a menina estilhaça uma lâmpada de vidro e, como se colocasse em prática um feitiço, enfia na carne que a mãe preparara para o pai caquinhos do vidro junto de um chumaço de cabelos seus. Nisso, recita baixinho “as palavras mágicas de mamãe: só teremos paz quando ele morrer”.

É quase como se também em sereia no copo d’água a personagem principal fosse uma voz, incorporando a fala aos poemas e nomeando experiências enquanto se estranha, “como quem tenta desacostumar um corpo”.

A poesia não é um luxo
No ensaio A poesia não é um luxo, que compõe o livro Irmã outsider: ensaios e conferências, lançado no Brasil em 2019 pela Autêntica, Audre Lorde defende que a vida não deve ser encarada ao modo europeu, como um problema a ser resolvido por meio apenas das ideias que temos das coisas, pois devem ser levadas em conta também as forças ocultas, relacionadas aos sentimentos e à ancestralidade.

Seria da fusão entre racionalidade e respeito por fontes ocultas de saber que se daria uma poesia essencial, “como destilação reveladora da experiência e não como estéril jogo de palavras”. Para Lorde, a poesia não é um luxo, mas uma necessidade vital. “É da poesia que nos valemos para nomear o que ainda não tem nome, e que só então pode ser pensado.”

O primeiro capítulo do livro de Rizzi traz a lenda das bonecas russas na epígrafe: um artesão teria talhado uma boneca tão bonita que não quis vender, levou para casa e a chamou Matrioshka. Sentindo-se sozinha, a boneca pediu um bebê, o artesão talhou uma boneca menor, serrou a Matrioshka e colocou dentro dela a nova boneca, batizada Trioshka. Aconteceu de novo, agora veio a Oshka. Na quarta vez, para acabar com o problema e garantir que não lhe seria pedido outro bebê, o artesão faz rapidamente um bigode no boneco, chamando-o de Ka.

O capítulo matrioshkas é uma série de poemas com cinco nomes femininos: Claire, Hollie, Ivonka, Coralina, Esme. A atenção dada aos nomes (“Esme gosta quando repito teu nome/ Esme”) ou à ausência deles (“me sinto tão mulher/ quando olhos os créditos/ do álbum e no piano leio apenas/ — mulher”) e a enunciação de experiências a partir desses nomes (“agora cá dentro um bicho que me come/ dizem mulher/ digo Coralina”) trazem à cena cada uma das matrioshkas, antes ocultas, tendo filhos e sendo de brinquedo.

Audre Lorde escreve: “Mantidos por perto como apêndices inevitáveis ou agradáveis passatempos, esperava-se que os sentimentos se submetessem ao pensamento assim como era esperado que as mulheres se submetessem aos homens. Mas as mulheres sobreviveram. Como poetas”. E para Lorde novas ideias não existem. O que há são novas formas de fazê-las serem sentidas.

O poema barcarola mulher também exemplifica essa espécie de batismo que acontece com frequência em sereia no copo d’água. Com o gesto de dar nomes (“mulher seu rosto marielle”), emerge o sentido de alteridade. Reconhecer e nomear é dar existência e continuidade ao que seria um apagamento (“inominável teu rosto/ jamais tocado”).

Parece que a voz que nomeia o mundo enquanto o estranha, tornando visíveis formas de existir desviantes, não configura exatamente uma conversa, menos ainda uma exibição oral, vocal. É uma fala entre a memória e o aviso, como se do trauma fosse resgatada uma força e então coisas precisam ser ditas para que tornem a existir de outra maneira. Um dos procedimentos adotados por Rizzi seria, então, uma voz substancializada na fala a partir de seu centro, não por luxo, mas por necessidade.

sereia no copo d’água
Nina Rizzi
Jabuticaba
86 págs.
Nina Rizzi
É historiadora, tradutora e poeta. Uma das editoras da revista de poesia e tradução escamandro, publicou, entre outros livros, caderno-goiabada (2013), a duração do deserto (2014), geografia dos ossos (2016) e quando vieres ver um banzo cor de fogo (2017).
Ana Luiza Rigueto

É poeta, jornalista e especialista em literatura brasileira. Atualmente, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com pesquisa em poesia contemporânea. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e tem poemas em diversas revistas online.

Rascunho