Lembrança de Alexandre Eulalio

Estantes de livros desabando e conversas vertiginosas sobre literatura e cultura
Ilustração: Carolina Vigna
30/03/2020

No final do ano passado, participei de uma mesa-redonda em comemoração aos 35 anos do Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Falei sobre o próprio Alexandre Eulalio, colega e amigo do Departamento de Teoria Literária, falecido em 1988, que muitos docentes e alunos atuais sequer conhecem.

Contei, por exemplo, o fato de que foi graças ao artifício do “notório saber” que Alexandre pôde ser contratado pelo Departamento de Teoria Literária, uma vez que ele não possuía qualquer título universitário. Para as exigências atuais de contratação com doutorado, a situação parece estranha, mas, de fato, até os anos oitenta, não era tão incomum assim. A carreira universitária era menos institucionalizada, e os títulos que valiam eram mais os da atuação intelectual pública do que os da carreira acadêmica.

Antes de vir para a Unicamp, Alexandre lecionava na Universidade de Veneza, e especialmente na Itália, até pouco tempo atrás, a falta de títulos formais era comum. Mas claro que, no Brasil, tradicionalmente bacharelesco, os títulos sempre contaram muito, ainda quando muitas vezes não significassem nada. Por isso mesmo, acho que Alexandre se ressentia um pouco dessa ausência de titulação formal —, embora quase todos do Departamento sentíssemos, na direção inversa, que os títulos eram letra morta diante do conhecimento extraordinário que ele possuía dos objetos de cultura — do Brasil ou de fora dele; do século 19, seu século de predileção, ou outro que fosse.

Apenas para dar um exemplo do século 17, que me tocava mais diretamente, lembro de que eu tinha em minha sala um pôster de uma carruagem de D. João IV. Tão logo a viu, Alexandre fez várias observações muito precisas sobre heráldica, tendo como ponto de partida o brasão na porta da carruagem. E essas aulas repentinas, a propósito de qualquer imagem, objeto, livro ou simples nome que surgisse na vizinhança, eram frequentes quando Alexandre estava por perto, pois o seu saber ia muito além de pesquisas e especializações.

Dou-lhes outro exemplo: nos tempos iniciais do Instituto de Estudos da Linguagem, Alexandre e eu éramos representantes da nossa biblioteca setorial, ainda muito precária. Nessa condição, fomos muitas vezes ao depósito de livros da Universidade, que ficava onde está hoje o Arquivo Central, para examiná-los e solicitar os que nos interessassem. Pude então observar de perto a intimidade de Alexandre com os livros. Ele os conhecia não apenas pelos conteúdos, autores, títulos ou editoras, como é usual, mas de forma mais entranhada, mais táctil e sensorial, a começar pela capa, pela tipologia, pela mancha da impressão, e, o que mais me admirava, pelo tipo de papel usado nas publicações. Ele não precisava olhar a ficha catalográfica para saber a data de edição e outras informações precisas sobre os livros, que pareciam sussurrar-lhe ao ouvido segredos que ninguém mais penetrava. Para mim, era quase da ordem do fantástico ver como ele podia elucidar aspectos de um livro desconhecido, apenas manuseando aquelas páginas que pareciam correr para se entregar ao seu tato.

Como o saber de Alexandre era sempre copioso e eu, então, apenas um jovem rústico, confesso que nem sempre ouvia com atenção devida a riqueza e a originalidade dos seus comentários. Por exemplo, quando me chamou para escutar em sua sala, bem em frente da minha, uma versão ainda inacabada de um ensaio que escrevia sobre Gonzaga. Ele lia as frases com entonação caprichada, perguntando ao mesmo tempo o que eu achava, não apenas a respeito do que a frase dizia, mas também sobre como a escrevera. E eu me impacientava com tais minúcias — que atribuía a um preciosismo oitocentista —, e queria logo resolver a questão da ideia principal do artigo, atalho que Alexandre jamais permitia.

Outra lembrança que me veio à cabeça foi quando, certa noite, ele me chamou ao telefone, pedindo-me para ir à casa dele na Vila Industrial, onde morava com outro querido amigo já falecido, Paulo Ottoni, do Departamento de Linguística. A voz do Alexandre me pareceu alterada, e eu tratei de sair correndo, carregando comigo meus dois filhos ainda pequenos, que não tinha onde deixar. Ao tocar a campainha de sua casa — era uma casa operária do século 19, tombada, bem típica dessa zona campineira antiga —, Paulo me atendeu e, sem dizer nada, apenas me convidou a entrar. Mal acreditei no que vi: simplesmente todas as estantes da casa vetusta, que o Alexandre vinha abarrotando com seus milhares de livros, haviam despencado e se esparramado pelo chão, dando a impressão de um mar revolto, ainda em mutações ameaçadoras. Naquela ocasião, havia cerca de 18 mil livros na casa, além dos outros tantos que deixara no Rio de Janeiro.

Uma estante devia ter caído e arrastado outra e mais outra, de modo que havia montanhas de livros no chão de vários cômodos. Alexandre e Paulo estavam ali, encalhados, perplexos, bem no meio daquela tempestade. A certa altura, sem ter o que fazer, simplesmente fomos tomar café e terminamos contemplando o desastre com humor. Não me lembro se, no dia seguinte, os ajudei a tomar alguma providência prática, possivelmente não, mas os meus filhos, ainda hoje, mais de 30 anos depois, ainda se lembram daquela folia dos livros.

Tornando aos escritos de Alexandre, diria que uma característica comum a todos eles, a despeito da enorme variedade de assuntos pelos quais se interessava, era a articulação estreita entre duas abordagens usualmente incompatíveis. De um lado, havia sempre uma relação muito pessoal com o objeto de estudo; de outro, uma visão pormenorizada de tudo que o cercava em termos históricos e culturais. Esse nexo inesperado afetivo-histórico, ou íntimo-erudito, em termos críticos, é muito difícil de obter, pois a erudição comumente é fria e miúda, enquanto a afeição, quente em excesso. Nos estudos de Alexandre, entretanto, tal nexo costumava ser bem balanceado por causa da forma única que a erudição tomava nele: de um lado, ela possuía um arco muito abrangente —, semelhante ao “ter vária notícia de toda cousa”, proposto pelo jesuíta Baltasar Gracián —; de outro, ela incorporava um componente provincial e fantasioso, que podia ser resumido como uma mistura muito saborosa de provincialismo (especialmente mineiro) e fantasia imperial.

A propósito ainda da erudição de Alexandre, Carlos Augusto Calil, organizador de vários livros póstumos do amigo, diz que ele foi o “inventor involuntário do hipertexto”. Faz sentido. Se entendermos o hipertexto como um texto inscrito dentro de um texto inscrito dentro de outro texto e assim por diante, teremos uma boa imagem da infinidade de objetos que cabiam em qualquer objeto sobre o qual recaísse a atenção do Alexandre. O certo é que você podia saber qual o assunto que dera início a uma conversa com Alexandre, mas não podia adivinhar quais outros, longínquos e surpreendentes, seriam convocados ao longo dela. No fundo, aquela impressão de estantes de livros desabando valia para todas as conversas vertiginosas que tive o privilégio de ter com ele.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho