Mover-se sem descanso

Em "Desterro", de Camila Assad, as mulheres se movem na parte invisível das cidades
Camila Assad, autora de “Desterro”
26/02/2020

Zaíra é o nome de uma cidade invisível de Italo Calvino e descrevê-la deveria contar seu passado, mas não, “a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas”. Acontece algo parecido em Desterro, terceiro livro de poemas de Camila Assad: “alinho o traço mais/ longo da minha mão/ com a mais longa/ avenida da cidade/ e ambas congelam/ competindo pra saber/ quem vai morrer primeiro”. Quando equipara a construção da cidade a uma forma de escrita, Camila Assad parece entendê-las como arquivos, já que “é na cidade e é através da escrita que se registram os acúmulos e conhecimentos”.

Em Calibã e a bruxa, Silvia Federici torna visíveis algumas estruturas de dominação e exploração na passagem para a Era Moderna. Quando destaca o movimento herético, espécie de “teologia da libertação” da Idade Média, que denunciava as hierarquias sociais, a propriedade privada e a acumulação de riquezas, Federici fala da forte presença de mulheres no movimento, que foi violentamente sufocado. Lá, elas tinham direitos equivalentes aos dos homens, desfrutando de vida social e mobilidade (perambulavam, pregavam). Para Federici, o surgimento do capitalismo coincide com uma “caça às bruxas” e com a construção de “feminilidade” como função-trabalho disfarçada de destino biológico. Ou seja, mulher é o ventre que pare e trabalha, sem remuneração, pela casa. “Mulheres”, no estudo de Federici, tem o sentido de uma história invisível e uma exploração.

Nos versos de Assad, “as mulheres trabalhadoras não vivem/ propriamente o espaço público,/ mas o atravessam para garantir/ a manutenção familiar”, a persistência do ambiente doméstico na rotina urbana das mulheres aponta para uma “expansão da função do espaço privado” e para a duplicação das jornadas de trabalho. No capítulo I left my heart in Anhangabaú, a autora trabalha as ideias de espaço (ação, movimento, liberdade) e lugar (pausa, calma, refúgio). Escreve “cada casa é um caso/ mas toda casa é lugar/ mesmo sem paredes/ mesmo sem telhados/ mesmo se apenas espaço/ para os transeuntes/ numa manhã/ de terça-feira na/ avenida Brasil”. A casa é tornada avenida, feita território urbano, espaço de disputa de forças.

No poema A perda da aréola, Assad reescreve A perda da auréola, de Baudelaire. Nele, uma “bebedora de gin tônica e comedora de crepioca” precisou perder suas insígnias, as aréolas do peito, para “passear incógnita, cometer ações reprováveis e andar sem camisa como um simples macho”. Segundo a sua teoria, a mulher não pode ser uma flâneur (ou flâneuse, o termo no feminino), não é possível que seja uma observadora distraída, já que anda na rua preocupada com uma lista mental de perigos a serem evitados. Perder a “aréola” significa, menos que reivindicar a deambulação, entender que a presença nas cidades passa, violentamente, pelo corpo.

No poema 29: “a leitura das mãos lhe revelou:/ bom esposo, três filhos, dois cachorros/ e um sobrado com mofo na vila madalena/ (próximo ao metrô, uma vaga na garagem)”, e a estrofe que encerra o poema: “raspou até sangrar as palmas no asfalto”. A exemplo da arquitetura, que “é ao mesmo tempo continente e registro da vida social”, a leitura da mão pode ser, além disso, instrumento de adivinhação. Raspar a palma no asfalto, gesto desesperado para impedir o futuro indesejado, ganha ares de demolição emergencial enquanto recria estruturas através da linguagem para que o corpo possa, enfim, ganhar a cidade. Fica a impressão de que Desterro é sobre “dizer que eu pertenço a algo/ maior que essa casa”.

Performance da mobilidade
O poema Prisão, de Cecília Meireles, se inicia com a menção a quatro mulheres no cárcere de uma cidade. Apenas quatro. Conforme avança, o número de mulheres presas aumenta tanto que, de tantas e tão presas “por outros e por si mesmas”, ninguém as solta. Um trecho desse poema é a epígrafe do livro de Assad:

Quatro mil mulheres, no cárcere,
e quatro milhões — e já nem sei a conta,
em cidades que não se dizem,
em lugares que ninguém sabe.

No ensaio A ideia de um mundo sem fronteiras, Achille Mbembe se refere à “prisão” como a antítese do movimento, da liberdade de se mover: “Não há oposição mais dramática à ideia de movimento do que a prisão”. Em Desterro, alguns poemas têm setas como recurso visual gráfico. Sinalizam direções, distâncias, localidades e temporalidades — número de passos dados, quilometragem, passagem dos anos, sentido do movimento.

Em O método Albertine, Anne Carson escreve: “As pessoas que Marcel ama são pessoas em movimento. Como Albertine — sempre correndo para algum lugar de bicicleta, de trem, de carro, num cavalo ou se atirando pela janela”. Carson diz que Marcel é o centro da “atividade cinética” das personagens em movimento: “ele é como a flecha alada do segundo paradoxo de Zenão, lançada do arco mas que jamais atinge o alvo porque não se move”.

E a flecha não se move pois, como explana Aristóteles, o movimento da flecha, sendo uma série de instantes, descreveria a imobilidade de cada um desses instantes. Segundo Carson, é possível imaginar o romance de Proust como um longo instante imobilizado. Em Desterro, os instantes imóveis são também ilustrados pelas setas, que funcionam como uma performance da mobilidade. Ou, como escreve Assad: “Acho linda a metáfora da/ liberdade que você carrega/ em cima da caloi vermelha”.

O palco dessa performance da mobilidade, ou da liberdade, é, no entanto, a ciclofaixa da Avenida Paulista, comparada com “aquela episiotomia necessária/ como uma cicatriz já assimilada/ de uma cidade que sofreu violência obstétrica/ [entre outras]”. A episiotomia, incisão feita na região do períneo durante o parto, é considerada um procedimento violento e inadequado. A pesquisa Nascer no Brasil: Inquérito nacional sobre parto e nascimento, coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz e publicada em 2014, entrevistou mais de 23 mil mulheres em maternidades públicas, privadas e mistas. Das entrevistadas que tiveram parto normal (53,5%), mais da metade passaram pela episiotomia.

Apesar do procedimento só ser recomendada em casos isolados, em que mãe ou bebê estão com suas vidas em risco, muitos obstetras o fazem como rotina de parto, sem conhecimento e consentimento da mulher, o que configura violência obstétrica, sob pena de um a dois anos de prisão e multa. Em 2017, tendo em vista essas e outras intervenções e abusos, foi aprovado um projeto de lei que delimita como crimes uma série de práticas danosas à integridade física e psicológica das mulheres em trabalho de parto ou logo após. No mesmo ano, o Ministério da Saúde publicou as Diretrizes nacionais de assistência ao parto normal, documentando e instituindo práticas humanizadas e disponibilizando-as publicamente para os profissionais de saúde e demais interessados.

Dois anos depois, em maio de 2019, o Ministério da Saúde publicou um ofício que desconsiderava as considerações da Organização Mundial da Saúde sobre o tema e pedia que fosse abolido o uso do termo “violência obstétrica” em documentos de políticas públicas, já que os “incidentes” durante o atendimento à mulher pelos profissionais de saúde ou outras áreas “não tinham a intencionalidade de prejudicar ou causar danos”. Mas, após recomendação do Ministério Público, o Ministério da Saúde voltou atrás.

Ao colocar sobre o selim da bicicleta vermelha uma mulher em quem possivelmente foi feita uma episiotomia (“como não consigo pedalar/ peguei o metrô até a barra funda”), pode-se dizer que Camila Assad quase conta a história do som “sem fazer nenhum barulho”, tipo uma fotografia da explosão sem o estrondo — só o fogo e os rastros. Assad chega a mencionar que “precisava escrever sobre flores/ porque são metafóricas mas” escreve “a materialidade das superfícies/ encarando arestas brutas/ invadindo as nossas mãos”. A cidade invisível é também uma história invisível e uma prisão invisível. A forma de linguagem, essa cidade-escrita, é a tentativa do impossível de fazer-se habitável.

Aquilo que pode ser tomado por uma performance da mobilidade, e parece sugerir, não “uma forma de turismo experimental”, mas o próprio desterro, é, nesse sentido, a violência de não ser autorizado a estar em casa. Mover-se sem descanso pode significar tanto ter a prisão no corpo como, ainda, um jeito de não ser assimilado. Deslocar-se é estar onde não se é esperado e também uma forma de não se deixar capturar.

Desterro
Camila Assad
Edições Macondo
104 págs.
Camila Assad
Nasceu em 1988, em Presidente Prudente (SP). É autora dos livros Cumulonimbus (2017) e eu não consigo parar de morrer (2019). A obra Desterro foi premiada pelo ProAC-SP na categoria Criação Literária — Poesia.
Ana Luiza Rigueto

É poeta, jornalista e especialista em literatura brasileira. Atualmente, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com pesquisa em poesia contemporânea. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e tem poemas em diversas revistas online.

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