Apresentar a obra de uma escritora até então desconhecida, mas que acaba de ganhar o Nobel de Literatura, é algo que não acontece todo dia. Tivesse o maior prêmio literário do planeta caído nas mãos — e na conta bancária — de um gigante como Philip Roth ou Amós Oz, ambos solenemente ignorados até perderem sua chance em definitivo ao partirem deste mundo, ou Ian McEwan ou Paul Auster, esses ainda vivos e portanto no páreo, mas cuja notoriedade não tem comovido a Academia Sueca, uma questão prosaica não assaltaria o resenhista desde o primeiro contato com a obra de Olga Tokarczuk: o que há nela para merecer um Nobel de Literatura? Resolvida a questão, solucionado então o problema, com a possibilidade ainda de se discordar humildemente da escolha. Obviedade, contudo, não combina com literatura, muito menos com prêmios literários. E menos ainda com o Nobel.
Comecemos pelo fim: o Nobel não é apenas um prêmio literário, pois não se limita a premiar uma obra melhor dentre as melhores que a ele concorrem em determinado ano, desde o longínquo 1901 inaugural. Pressupõe-se que todos os ganhadores tenham, no mínimo, excelência literária, em que pese alguém possa argumentar que, quanto a esse quesito, Bob Dylan não esteja no mesmo patamar de, por exemplo, um José Saramago. Para o próximo ano, se dois dos já mencionados acima fizerem parte da lista de indicações, quem se arriscará a considerar McEwan melhor ou mais excelente do que Auster? Talvez a saída para uma saia justíssima dessas esteja entre os motivos que têm levado a Academia a fugir de escolhas estritamente literárias para assumir decisões mais abrangentes ou, vá lá, mais “políticas”, que é afinal um critério, e, convenhamos, ele se equivale a qualquer outro de caráter extraliterário tão despudoramente usados em prêmios de menor relevância, embora sempre se o negue com indignada veemência. O Nobel, pelo menos, não o nega, além de refinar tal opção com argumentos via de regra inquestionáveis.
Se o Nobel visa a alcançar e premiar o que está além das fronteiras da literatura é também porque a literatura, ela mesma, não está sujeita a fronteiras, antes o contrário. A literatura se desdobra e se expande sempre quando mostra o que a Filosofia ainda não teve tempo de pensar, a Sociologia ainda não conseguiu analisar, a História sequer começou a interpretar. A arte caminha sempre alguns passos à frente do andar da humanidade, e é ela a primeira a sentir e refletir seus anseios, conflitos e tendências. Voltemos ao caso do cantor e compositor Bob Dylan, que mereceu o Nobel de Literatura em 2016 “por ter criado novas expressões poéticas dentro da grande tradição musical americana”. A singeleza da justificativa encerra um conceito sofisticado e inovador: a canção popular elevada à condição de literatura; o texto que se canta, mesmo quando não seja exatamente poesia, a ela pode, sim, ser equiparado. Noutras palavras, o mérito artístico de certas canções está definitivamente reconhecido, sob a chancela do Nobel de Dylan. Não é pouco, não é bobagem, mas essa é uma outra discussão.
Seria inevitável que um prêmio de tal magnitude tivesse lá suas polêmicas. Ganhadora da edição de 2018, Olga Tokarczuk esperou um ano para ser agraciada junto com o vencedor de 2019, o austríaco Peter Handke, por conta de um escândalo de assédio sexual que explodiu no colo do comitê da Academia. Processos tramitando na Justiça, ânimos serenados em Estocolmo e Paris, Tokarczuk foi finalmente anunciada como merecedora do Nobel “por uma imaginação narrativa que, com paixão enciclopédica, representa o cruzamento de fronteiras como forma de vida”. A ironia da escolha não está na costumeira e exemplar concisão da justificativa, que esconde também o viés político do qual se falará adiante, mas na biografia de quem teve o prêmio atropelado por um episódio dessa natureza: Olga Tokarczuk é feminista de carteirinha. Além disso, tendo já merecido outras premiações importantes ao longo da carreira, uma em especial, o German-Polish International Prize em 2015, é “um reconhecimento estendido a pessoas especialmente empenhadas na promoção da paz, desenvolvimento democrático e entendimento mútuo entre as pessoas e nações da Europa”. Nada combina menos com assédio sexual do que essas credenciais, e há inclusive quem especule que a escolha foi também uma tentativa de salvar a reputação da Academia depois do abalo sofrido.
A trajetória de Tokarczuk, desde o lançamento do primeiro livro, uma coletânea de poemas, em 1989, até chegar ao Nobel de Literatura, aos 57 anos, quinto polonês a receber tal honraria, é exemplar também do quanto a obra reflete a autora e sua circunstância, e de quanto a premiação se deveu a esse aspecto. Ainda estudante de Psicologia, Tokarczuk trabalhou como voluntária num asilo para adolescentes com problemas comportamentais. Depois de formada, atuou por alguns anos como terapeuta até abandonar a profissão em favor da literatura. Autoproclamada discípula de Carl Jung, admite que o suíço influencia sua obra literária. Personagem controversa, Tokarczuk é vegetariana, ativista não só no feminismo, mas em causas ambientais, e de esquerda. Embora aclamada pela crítica e bem-sucedida comercialmente na Polônia, vem sendo atacada em seu país por grupos que a consideram anticristã, antipatriota e promotora do ecoterrorismo. Como se vê, polêmica é o que não falta na vida dessa simpática aquariana que não mostra a idade debaixo de seus inusitados e graciosos dreadlocks.
Uma das grandes
Pouco se conhecia Olga Tokarczuk fora da Polônia até o advento do Nobel. Primeiro e único livro da autora publicado no Brasil, Os vagantes está fora do catálogo da Tinta Negra, que o lançou em 2014. Para reapresentá-la ao público brasileiro, a Todavia escolheu Sobre os ossos dos mortos, publicado originalmente em 2009 e adaptado para o cinema por Agnieszka Holland em Rastros, de 2017. É também um de seus títulos mais emblemáticos, algo que o resenhista só foi descobrir após ler o livro e ir em busca das referências biobibliográficas aqui usadas. A pergunta que acompanhou a leitura — o que há ali para merecer o Nobel — foi sobejamente respondida ao serem encontradas notáveis coincidências entre a biografia de Tokarczuk e a da protagonista de sua novela. (Amós Oz se escandalizaria ao saber que um fã dos mais ardorosos especula aqui atentando contra um de seus mais preciosos ensinamentos. Quando discorre sobre o tema da autobiografia, a que dedica várias páginas do magistral De amor e trevas, Oz sentencia: “quem procura a essência de um conto no espaço que fica entre a obra e o seu autor comete um erro: é muito melhor procurar não no terreno que fica entre o escritor e sua obra, mas justamente no terreno que fica entre o texto e seu leitor”. Substitua-se “conto” por qualquer outro gênero, ou mesmo por “obra”, e a premissa continuará valendo; contudo, em se tratando de um Nobel, ela fica provisoriamente suspensa.)
Num remoto vilarejo ao sul da Polônia, na fronteira com a República Tcheca, uma professora de inglês dedica seus dias de aposentada ao estudo da astrologia, enquanto lê e traduz poemas do inglês William Blake (1757-1827) e toma conta de casas da vizinhança deixadas a seu cuidado, quando o rigor do inverno afasta dali proprietários e inquilinos por temporada. Vegetariana convicta, morando só e preferindo a companhia dos animais à dos humanos, Janina Dusheiko vive às turras com os caçadores numa zona onde a caça, mesmo quando ilegal, é tolerada e até incentivada. Não contente em sabotar armadilhas para animais silvestres, vai à polícia denunciar “assassinatos” de animais e enfrenta ela mesma os “assassinos” com autoridade inflamada em defesa da vida. Os poucos moradores do lugar a têm por uma velha maluca a insistir numa causa que ali quase mais ninguém leva a sério. A cada visita à delegacia, ela evoca seus direitos de cidadã para exigir o registro de ocorrências que a polícia desdenha por considerar descabidas, além de cobrar o devido andamento de suas questões.
Narrado em primeira pessoa por Janina, Sobre os ossos dos mortos começa na madrugada escura em que Esquisito bate à sua porta pedindo ajuda: Pé Grande, com quem Janina tem sérias desavenças justamente por ser caçador e desprezar seus amigos inumanos, está morto (dentre outras excentricidades, Janina, que detesta o próprio nome, tem o hábito de apelidar os outros de acordo com suas personalidades). Agora os dois vizinhos, únicos que restam vivos naquele fim de mundo gelado onde até os telefones celulares reinam para funcionar, têm de tomar alguma providência. Eles empreendem então uma aventura na neve para chegar à casa do morto e lá decidem preparar o corpo para o velório antes que consigam avisar as autoridades. Vários indícios levam Janina a imaginar que a morte de Pé Grande não tenha sido natural, mas provocada, e de uma forma algo grotesca. Outros caçadores irão morrer, todos em circunstâncias misteriosas, desafiando a capacidade de investigação de uma polícia não acostumada a lidar com esse tipo de ocorrência. Enquanto se suspeita que o tráfico ilegal de peles e até a máfia estejam por trás das mortes, Janina está convencida que se trata de uma vingança dos próprios animais contra seus algozes. E mais não se poderá aqui avançar sob pena de trair o futuro leitor. Não se imagine, contudo, uma trama de suspense convencional: thriller existencial e suspense ecológico são duas das classificações pouco ortodoxas que a crítica vem adotando.
A novela se divide em 17 capítulos, cada qual tendo como epígrafe uma citação de William Blake. Nas pouco mais de duzentas e cinquenta páginas, a prosa de Tokarczuk, pelo menos no quanto se pode avaliar a partir da ótima tradução de Olga Bagińska-Shinzato, feita diretamente do polonês, conjuga naturalidade e requinte estilístico de uma forma que só o grande texto literário alcança, num discurso que flui com serenidade e limpidez enquanto arrebata o leitor em vários momentos de pura beleza. Falou-se antes da excelência literária indispensável a um ganhador do Nobel; quanto ao aspecto formal, não há o que se discutir: só pelo que realiza em Sobre os ossos dos mortos, Olga Tokarczuk já pode reclamar seu lugar entre os grandes prosadores de sua geração.
Janina Dusheiko é uma personagem riquíssima de possibilidades que Tokarczuk explora com desvelo de artesã. A “imaginação narrativa”, a “paixão enciclopédica”, o “cruzamento de fronteiras como forma de vida”, atributos usados na justificativa para o Nobel, comparecem na criação de um tipo impagável, que usa a astrologia para se situar num mundo do qual se distancia paulatinamente à medida que se recolhe a suas esquisitices. Uma figura que de fato rompe com qualquer estereótipo de normalidade, mas também a ativista de uma causa na qual sinceramente acredita e para a qual luta com as armas das quais dispõe — quantas vezes um lunático já mereceu tal fama justamente por conta de seu idealismo. Há também um lado mítico que não se vincula diretamente à astrologia tampouco a qualquer religiosidade, e tem mais a ver com os sortilégios da natureza num cenário inóspito em boa parte do ano. Janina vive períodos de isolamento, relaciona-se com os animais de uma forma peculiar e é atormentada por visões de gente morta. Ela sofre de algo que chama de “minhas moléstias” sem especificar quais sejam, ainda que pareçam enfermidades físicas acionadas por algum gatilho emocional.
O mais cativante em Janina, contudo, é seu anacronismo pungente: ele se impõe como uma forma de resistir ao andar desenfreado do mundo contemporâneo, e o leitor é instado a refletir se as convicções da velha maluca não fazem mesmo sentido nos complicados dias de hoje. Finalmente chegamos aqui ao aspecto político do Nobel de Olga Tokarczuk. São dois fatores, na realidade, mas eles se complementam. O primeiro é a luta pela defesa da vida, da natureza e dos direitos dos animais, um tema candente da atualidade que vem gerando discussões e mobilizando gente em todo o planeta, algo que não se pode mais desprezar e considerar “coisa de maluco”. O segundo é a figura de Tokarczuk — e, por extensão, seu alter ego Janina Dusheiko — contrapondo-se ao ultraconservadorismo e nacionalismo em ascensão na Europa, especialmente na Polônia sob o governo de Andrzej Duda. Ainda que não nos comova ou que pensemos de forma diferente, a simples existência de um movimento de oposição a um modelo que afronta conquistas da civilização ao longo dos séculos propicia um exercício dialético imprescindível à manutenção da estabilidade democrática.
É a resistência, palavra adotada aqui no Brasil depois das últimas eleições presidenciais, vinda dos confins gelados da Polônia e levando o Nobel de Literatura.