Como sempre ocorre nos livros de Alexei Bueno, o mundo de hoje é pulsante na métrica rigorosa e, por alguma referência mais ou menos evidente, a cidade do Rio de Janeiro funciona como índice desse mundo. Em Cerração, o novo título do autor, é ela que vemos quando revisita alguns motivos clássicos, como o das forças naturais — a chamada “deusa natura”, pela nomenclatura das “tópicas” proposta por Ernst Curtius — “Sobre este velho Rio de Janeiro/ …/ Tormentas caíram, dando ao chão um cheiro” (Meteorologia). Eis a grande cidade praiana convertida em lodaçal pelas inundações de 2018 (o autor apõe datas de escrita), que repercute na comparação com a morte hospitalar do Poema agônico: “… mais digna é a tempestade/ Que rasga a tarde com o seu ronco uivo,/ E arranca troncos e inunda a cidade”.
A coletânea não é tão desolada como A árvore seca (2006) ou As desaparições (2009), nem tão imagética como a bem anterior Em sonho (1999). Detendo-se no desfazimento das formas e na corrupção do corpo, o novo livro é uma “vida passada a limpo” — quando quase sempre o poeta encontra sentidos desconexos e dispersão. Alguns títulos falam por si: Inversão, Fragmentos, Desastre, Uns cacos. Alexei está sem dúvida mais perplexo ante o insondável da “ordem das coisas”, menos categórico — “Para onde? Lá alguém o sabe?”. Ainda conforme as tópicas de Curtius, a carência de sentido seria o “mundo às avessas”, mas também há no livro o motivo do “ancião no menino” (nos versos de Infância, O encontro) e outros tantos.
O poeta que ruma para os 60 anos se sente noturnal e já ouve ecos de “nunca mais” (em Mitologia). Poderia ser contraditado pelo de 30 que, nos versos livres de A juventude dos deuses (1996), começava afirmando: “Tudo o que se passou/ é mentira/ Porque o que é o ser/ Não pode nunca mais deixar de sê-lo”. A poesia se faz dessas oscilações: e não se contradiz, pois sempre está abrindo uma nova angulação, modulada pela própria vida, pela cultura e pela atitude assumida diante do tempo. Agora a meditação sobre o envelhecimento encontra em Cerração elementos da poesia mais circunstancial: o dia da limpeza de um parque, o anônimo que chuta um rato na rua, ou a morte do barbeiro amigo: “Com isso, aonde os meus fios voarão?”.
Em saltos que lhe soam muito naturais, o passado se atualiza nos temas de Orfeu e Eurídice ou no da legenda de São Lourenço, martirizado com fogo — e advertindo a seus algozes sobre o lado menos tostado. O arco amplíssimo de temporalidades diz muito da própria escrita do autor, e clarifica suas opções formais.
Alternando com certa regularidade livros de verso livre e medido, na primeira forma adota o de matriz salmodiada, verso livre de largo fôlego, como se nota em suas odes, a exemplo do já citado A juventude dos deuses (1996). Quando faz verso medido, sua metrificação é firme sem ser pétrea, porque não abusa de recursos caros aos parnasianos, como a criação artificial de ditongos. Mestre do ritornelo, repetindo versos marcantes ou rimas para obter efeitos diversos, é extremamente musical ao retomar a tradição da estrofe composta, quando combina uma medida maior a uma menor, do que há muitos exemplos neste Cerração (veja-se Canção mínima, no destaque).
Opções formais
Livre ou medido, o poeta volta, desde as primeiras publicações, ao padrão pré-modernista da maiúscula inicial, marcando com esse gesto seu afastamento de vanguardas tornadas convenção. Há uma austeridade na expressão poética de Alexei, certo sentido de gravidade da poesia, mas isso nunca o impediu de combinar registros, usar calão ou visitar qualquer tema da sensibilidade, inclusive os mais carnais — sobre o ato sexual, vejam-se Voto e uma mórbida Orgia calcária.
Como situar essa poesia na libérrima — e, apesar, tão policiada — “contemporaneidade”? Por certo modo de ver, as escolhas formais devem ser representativas da fragmentação, da dispersão que, em Alexei, aparecem nos temas — e o fazem descair, às vezes, para a apatia de uma Cançoneta desconexa — “Não quero mais coisa alguma/ Nem os livros, nem mais nada” – ou usar a velha saída demiúrgica de certa Comédia, pela qual “um demônio, um demônio galhofeiro,/ Criou num dia só o mundo inteiro”. Qual o problema com essa poesia, além do termo de comparação que o autor oferece a si mesmo, em face da exuberante produção anterior? Perde para si e para uns poucos; ganha de livrarias inteiras.
O problema não está em Alexei Bueno, mas na possibilidade que sua poesia ajudou a abrir para novas escritas, ao preço de todas as incompreensões. Recuando um pouco, é preciso lembrar que entre nós o Parnaso atrofiou o Simbolismo, demitindo-o do papel inventivo que teve no resto do mundo. A linha oscilante entre as estéticas parnasiana e simbolista, de onde o autor de Cerração retirou sua linguagem, foi excessivamente distendida em uma evolução literária isolada da América Latina — esta mais conectada com a Europa na maioria hispânica — e encerrada apenas com o Modernismo de1922.
Em 1945, vinte anos após a ruptura modernista, uma nova geração pretendia fazer o balanço de ganhos e perdas. Foram jovens eruditos (Domingos Carvalho da Silva, Darcy Damasceno e outros) os que mais fácil caíram na tentação neoparnasiana (mas apenas na obra inicial, que os estigmatizou). Já então, porém, alguns talentos individuais desenvolviam voz própria a partir do cânone comum de condensação e racionalidade, ou, diversamente, voltando-se a elementos surrealistas que deitavam raiz no Simbolismo: o primeiro caso é o de João Cabral, o segundo o de Lêdo Ivo; e nem um nem outro sem pontos de intersecção entre si e com os demais.
São grandes obras realizadas, a de Cabral lida como exceção a 1945, o que até certo ponto é equívoco, e a de Lêdo simplesmente não lida, pelo grande equívoco de tomá-la como paradigmática do que nunca foi: as tendências restauradoras que, na década seguinte, 1950, viram surgir no seu próprio meio (a Revista Brasileira de Poesia) a ruptura agressiva do Concretismo. O debate seria depois subtraído por uma falsa antinomia, a da nova estética antidiscursiva, como único caminho possível.
É quando alguns fatos literários ocorrem, à beira da década 1990 e na sua primeira metade — um deles, Alexei Bueno. Sua obra hoje realizada, à qual se soma Cerração, faz com que o impasse inicial do revisionismo da Geração de 1945 se resolva em outros termos, que não o do desvio retificador ou o da intensificação de aspectos já divergentes, mas o do salto crítico para uma continuidade indefinidamente reiterável — porque sempre atualizável. A amálgama do clássico e do cotidiano, levada a extremo nesse novo livro, é algo impensável para o gosto parnasiano, mas também o é para o mainstream contemporâneo em geral. Não à toa o próprio Lêdo Ivo, em uma de suas últimas declarações, feitas no Rascunho [ao participar do Inquérito, edição 150], alinhando Bueno provocativamente a grandes poetas canônicos, que era preciso lhe prestar mais atenção.
Faz sentido: hoje a poesia mais celebrada se vale antes do mero anúncio de bandeiras do que de verdades biográficas levadas a realizações estéticas. Tantas vezes costuradas às pressas, vão erguidas ao calor da hora e conforme a direção do vento, quando Alexei Bueno está entre ambulantes, vadios, prostitutas, mendigos — a um deles chama “meu mendigo”, e lamenta quando percebe sua falta (A boa hora). São os “reis do Rio”, que agora “no WhatsApp/ mandam fotos com o tacape”. Este é o poeta que seus contemporâneos tantas vezes julgaram passadista.
O grande problema do que é velho ou novo em poesia jamais irá se resolver em termos evolutivos de supressão de formas, como se tratássemos de tectonismos ou extinção de espécies animais. Coerente com o projeto original de As escadas da torre (1984), este novo Cerração, com seu belo trabalho editorial de sucessivas folhas de guarda com gansos selvagens rompendo a névoa, parece oferecer a metáfora visual da trajetória literária de seu autor.