A fantástica memória

O galego Álvaro Cunqueiro foi um dos pilares do estilo que se consolidou como o Realismo Mágico latino-americano
Álvaro Cunqueiro, autor de As crónicas do Sochantre
31/12/2019

 

O Realismo Mágico tem raízes mais profunda do que podemos imaginar, e uma delas nos leva diretamente à Galícia. Um dos precursores, antes que o estrondoso boom latino-americano acontecesse, foi o galego Álvaro Cunqueiro (1911-1981). Livros de sua autoria como Merlín e familia [título original em galego], de 1955, e As crónicas do Sochantre, de 1956, são hoje essenciais para se entender melhor as complexas origens do “gênero” ou “movimento” eternizado no romance Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014).

Cunqueiro foi um mestre em mesclar fantasia e realidade. O traço mais marcante e reconhecido de sua literatura é a reinterpretação dos mitos e dos clássicos. Foi por este método peculiar que personagens como o Rei Arthur, Merlim e Odisseu puderam habitar entre galegos tradicionais, vivendo suas aventuras e conflitos em contextos bem diferentes dos originais.

Cunqueiro sempre esteve muito além de qualquer rótulo e sua escrita sempre fluiu para mares mais íntimos e por vezes mais melancólicos. Seu estilo sempre foi algo independente. Navegava com autonomia por diversas águas ao mesmo tempo, sem lançar âncora em nenhuma delas.

Escreveu em galego e castelhano com a mesma sensibilidade, com o mesmo fervor e com a mesma paixão. Morou em Madrid por dez anos, mas preferiu voltar às maravilhas da Galícia para nunca mais sair. É que, como bom galego que era, tinha alma nostálgica e era apegado à sua terra como uma árvore se apega ao solo. “A paisagem galega para mim não exige nada, assim como a natureza não exige nada”, disse em famosa entrevista ao programa A Fondo, de 1978. “Se a paisagem é um quebra-cabeça, eu sou uma peça que se encaixa bem dentro dela.”

Cunqueiro foi um mestre em mesclar fantasia e realidade. O traço mais marcante e reconhecido de sua literatura é a reinterpretação dos mitos e dos clássicos.

Como todo bom contador de histórias, Álvaro Cunqueiro tinha a mania de mitificar tudo. Toda história ganhava contornos fabulosos quando narrados por sua boca ou por sua pena. Os contrastes eram intensificados, as cores ficavam mais vivas e os cheiros, mais fortes. A verdade por si só nunca lhe era suficiente. Em sua jornada de “deformar” ou “transfigurar” histórias, a memória era sua principal aliada ― mais especificamente, a afetiva. A ela uniu o enorme conhecimento que tinha em literatura clássica e construiu, tijolo a tijolo, mundos onde o tempo cronológico e as distâncias geográficas tinham pouca ou nenhuma importância. Com ajuda da imaginação poética, transformava a memória do cotidiano em acontecimentos fantásticos. Era assim que deslocava os rígidos ponteiros das bússolas históricas e aproximava terras e eras com a liberdade e imaginação de uma criança.

Antes de publicar Merlín e familia, seu primeiro romance, havia se dedicado quase exclusivamente à poesia. Nas primeiras tentativas da adolescência, escrevia versos que mais tarde considerou “sentimentais e tristíssimos”, um luxo que segundo ele só a juventude pode permitir. Do lado poeta destacam-se Poemas do sí e do non (1933), uma trágica história de amor que muitos erroneamente acreditaram ter sido vivida pelo autor; Cantiga nova que se chama Rivera (1934), no qual resgata a tradição de canções e versos galegos da Idade Média, e Dona do corpo delgado (1946). Além disso, desempenhou a profissão de jornalista respeitado e escreveu peças teatrais de grande sucesso, como O incerto señor don Hamlet, principe de Dinamarca (1957). 

Exímio retratista
Nascido em 22 de dezembro de 1911 no pequeno município de Mondoñedo, na província de Lugo, Álvaro Cunqueiro levava o seu país dentro de si para onde quer que fosse. “Eu sou um animal literário de uma situação especial. Eu sou um escritor, um homem que viaja com um país ao fundo, que é minha Galícia natal”, declarou certa vez.

Filho do boticário Joaquín Cunqueiro Montenegro, aprendeu cedo o nome das plantas, das árvores e dos pássaros. Sabia de cor e salteado as cores, cheiros e cantos do seu quintal. Ainda na infância travou contato com todos os tipos de gente. Ricos, pobres, viajantes e fazendeiros, nobres e plebeus: todos iam à loja do seu pai em busca de algum alívio medicinal ou mágico para os mais variados tipos de problema ― uma vaca que não dá leite, um cavalo que não tem fome, um inchaço na pele, um mau olhado.

Ao pai, primeiro professor na matéria da vida, dedicou Tertulia de boticas prodigiosas y escuela de curanderos (1976) ― um relato sobre as maravilhosas práticas de curas naturais desenvolvidas em partes do mundo antigo. Sem sair de casa, o autor foi de Meca a Jerusalém para narrar as enfermidades, as receitas e os prodigiosos curandeiros que conheceu graças aos dias passados dentro da botica paterna.

O cordão umbilical entre Cunqueiro e seu torrão natal nunca foi completamente partido e, por ser apaixonado também por sua gente, dedicou-se a descrever suas dores, lutas e alegrias, sempre envoltas em névoa quase mágica. Xente de aquí e de acolá (1971) e Os outros Feirantes (1979) trazem o que o que próprio autor costumava chamar de retratos. Narrativas curtas, inteligentes e divertidas sobre a imensidão íntima de todo um povo.

Boêmio e gastrônomo
Homem carismático e de sorriso largo, cultivou amizades leais e duradouras durante a vida toda. Era bem-visto e benquisto por onde passava. São famosas suas incursões boêmias pelos bairros e bares de Madrid, embora fizesse questão de afirmar que a grande maioria delas foram inventadas por seus companheiros de prato e de copo.

Para além da poesia, teatro e ficção, tornou-se igualmente um dos mais importantes gastrônomos galegos. Sobre o tema escreveu La cocina cristiana de Ocidente e A cociña galega, duas odes à culinária local. Dizia que a cozinha galega era aproximada com a cozinha estrangeira em certos pontos, mas completamente peculiar em outros. Deleitava-se com um bom cabrito de Sam Fiz, com a empada de Portomarín e com os aromas do vinagre andaluz. Junto ao amigo e escritor José María Castroviejo (1909-1983), escreveu Teatro venatorio y coquinario gallego, um dos mais belos livros já escritos sobre culinária.

Mesmo tendo amor incondicional por sua terra e pela cozinha dela, mantinha a mente aberta para inovações vindas de fora. Não fazia cara feia ou torcia o nariz quando algo de fora era incorporado a certos pratos e via com entusiasmo o desenvolvimento da culinária galega para além de um purismo enviesado. Era, a um só tempo, sujeito provinciano e cosmopolita.

Do vinho galego era grande apreciador e consumidor. “O vinho é o mais fastuoso sangue da terra, de toda a terra”, escreveu no prólogo do livro Os vinhos de Galiza, do amigo e admirador José González Posada (Xosé, na grafia galega). “Os vinhos galegos dão a cada dia uma lição de humildade e de concórdia ao bebedor.”

Somente em 2015 os leitores brasileiros puderam ter acesso ao espírito criativo de Álvaro Cunqueiro, graças à edição em português de Merlim e família, lançada na coleção Mar Maior e que manteve os preciosos barroquismos da linguagem cunqueiriana. Um pequeno passo para uma editora, mas um grande passo para a história da literatura em terras tupiniquins.

Ao morrer, em 28 de fevereiro de 1981, Álvaro Patricio Cunqueiro Mora não deixou apenas a esposa Elvira González-Seco Seoane e os dois filhos, César e Álvaro. Deixou também órfãos de fantasia milhares de pessoas dentro e fora de sua amada Galícia.

Álvaro Cunqueiro
Escritor, dramaturgo e gastrônomo galego, foi uma das figuras centrais da literatura espanhola da segunda metade do século 20. Entre seus livros publicados estão Las mocedades de Ulises (1960), Cuando el viejo simbad vuelva a las islas (1961), Un hombre que se parecía a Orestes (1968), Vida y fugas de Fanto Fantini (1972) e El año del cometa (1974). Morreu em 1981.
Jocê Rodrigues

É jornalista, escritor e editor.

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