Com o Romantismo insinuando-se em meados do século 18 e instaurando-se na Europa no século 19, as possibilidades criativas ampliaram-se. O espírito rebelde age reativamente aos rígidos paradigmas estéticos renascentistas que perfizeram quase quatro séculos (embora com variável intensidade).
Vigorava então a firme e bem demarcada fronteira que separava os gêneros literários em sua forma — mas também no conteúdo. Mesmo com isso em mente, e após quase dois séculos, a leitura de Eugênio Onêguin, que a Ateliê traz de volta a estes trópicos em ótima edição bilíngue, ainda desconcerta o leitor moderno.
Não é para menos: não estamos aqui a lidar com um poema dramático, como o Fausto goetheano, apenas para citar uma obra contemporânea ao livro em questão, e cuja ousadia é igualmente fruto das tendências da época. Não, Eugênio Onêguin não é um poema dramático, mas um romance em versos! E, infelizmente, uma obra comparativamente pouco lida por aqui…
Quiçá, isso se dê em razão da particularidade formal, uma vez que o conteúdo apresenta certa tipicidade dos temas em voga da época.
Um filho do século
O título evidencia o eixo da obra. Num contexto de início do século 19 em terras russas marcadas ainda pela economia essencialmente rural e cultura periférica aos grandes centros da Europa, como a França (para citar uma nação cuja influência se faz sentir profundamente, não obstante os ecos das contendas napoleônicas), o leitor acompanha as errâncias de Eugênio, rapaz aristocrático de certa instrução, mas plenamente entediado da agitada vida mundana de São Petersburgo. Semelhante aos dândis do universo balzaquiano, embora de moral pouco mais elevada, Eugênio brilha nos círculos sociais que frequenta, ainda que com pedantismo e pompa:
A muitos, nosso Onêguin era (…)
Alguém versado, mas pedante:
Tinha o talento cativante
De resvalar qualquer matéria
Com jeito, tudo sendo dito
Com uns ares doutos de perito (…)
Fazia as damas rir com as chamas
De inusitados epigramas
Sua postura, contudo, é o suficiente nesse meio (o que Púchkin aponta com mordacidade):
A gente estuda um pouco disso,
Daquilo e seja como for;
Daí, bom Deus, não ser difícil,
Em nosso meio, o resplendor
É nesse meio em que refugiados da Revolução Francesa buscam guarida, sendo requisitados pelas famílias aristocráticas locais para tutores de seus filhos. A própria língua francesa circula com certo prestígio, sendo inclusive preferida por jovens moças sonhadoras para expressar suas paixões.
Eugênio é habitué dali, o terceiro elemento entre um casal, o espirituoso e bon vivant notório a todos, mas que acaba por se fartar desse banquete, partindo do seu habitat a fim de tomar posse da herança do tio.
Lá, desperta a desconfiança da população local, mormente pela atitude despreocupada e irreverente, e conhece o jovem poeta Vladimir Lênski, com quem travará improvável amizade.
Lênski é uma típica figura romântica, aspirando ao ideal do sentimento puro, desejo que o levará a Olga, moça que reside no povoado, e cuja irmã, Tatiana, leitora ávida de Richardson e Rousseau, cairá de amores por Eugênio.
Como se vê, a trama que se desenvolve no primeiro volume (o projeto editorial contempla dois) é típica de tantas outras que marcam a primeira metade do século; todavia, a grande força da obra reside, sem dúvida, na relação do narrador-personagem com a trama, na visão algo jocosa com que Púchkin enfoca a sociedade e seus costumes e, por fim, na forma estética.
É curioso notar a postura do narrador-personagem. A despeito de se fazer presente eventualmente na obra, como amigo de Eugênio, num curioso vínculo com sua criação, ressalta ser este “um retrato rabiscado”. É interessante como é demarcada uma distância idiossincrática entre ambos (o que muito agrada o autor):
Me apraz mostrar a diferença
A toda hora entre Onêguin e eu,
A fim de que nenhum leitor
Mordaz, ou mesmo editor (…)
Ao cotejar meus traços, diga
Que este retrato rabiscado
Por mim foi feito como fez
Um Byron, poeta da altivez,
Como se não nos fosse dado
Fazer agora um longo poema
Sem ter senão a nós por tema
Mais do que se esquivar de Byron, Púchkin parece querer transcender as convenções de seu tempo, e ao ler Eugênio Onêguin o leitor poderá perceber um estranho movimento de atração e distanciamento das inclinações românticas vigentes:
Feliz quem viu sua inquietação
E se livrou do seu suplício;
E mais feliz quem nem viu isso,
Calmou amores com distância (…)
Ah, amava, como em nosso ambiente
Ninguém mais ama; como é dado
Ao poeta louco tão somente,
Ainda amando condenado:
Sempre, aqui e ali um devaneio
Para tanto, também colaboram as farpas sutis que o autor atira à sociedade, a seus desafetos e mesmo à censura czarista, que é a presença oculta nessas páginas.
Em todos esses tópicos, por vezes encontramos um Púchkin impiedoso, de uma praticidade que transcende a temeridade romântica:
A quem amar? Confiar em quem?
Quem não nos vai trair na vida?
Quem mede os atos, fala, a bem
De nós e por nossa medida?
Quem é que nunca nos infama?
Quem só nos dá carinhos e ama?
A quem não pesa nosso vício?
Quem nunca enerva ou é um suplício?
Caça-quimeras, por favor;
Sem despender esforços a esmo,
Ame somente a você mesmo,
Meu digníssimo leitor,
É um objeto digno: claro
Que nada pode ser tão caro
Em outros momentos, mergulhando em digressões sterneanas, o autor nos descortina o palco mundano da sociedade, tirando o foco de Onêguin e atraindo para si:
Nos dias de farra e de paixões,
Com bailes me inebriava à farta (…)
Maridos respeitáveis! (…)
Escutem minha voz, lhes rogo (…)
Mamães, vocês também! As mais
Severas, olhem suas filhas:
Usem lorgnons para segui-las!
Ou então… então… Deus dê-lhes paz!
Eu só escrevo isso com um intuito —
Dizer-lhes que eu não peco há muito
Todos esses aspectos, enfim, temperados com um sarcasmo e cinismo muito singulares, contrapõem-se, no plano do conteúdo, ao idealismo que se materializa nas figuras do poeta Lênski e Tatiana; aliás, em Lênski e Onêguin encontra-se uma antinomia latente que haverá de se tensionar, gerando implicações dramáticas no decorrer da trama.
Plano formal
A obra é constituída de versos tetrâmetros — vertidos em octossílabos na tradução, com eventuais variações — distribuídos em estrofes de quatorze sílabas (denominadas por alguns de “soneto Púchkin”), com disposição de rimas em ABABCCDDEFFEGG.
Dentro da conhecida impossibilidade de se verter um conceito, materializado em uma palavra, de uma língua para outra, em estado puro, ainda mais um signo poético, os tradutores fazem um trabalho primoroso, conservando a seu modo as aliterações do original, lançando mão de enjambements e rimas aproximativas a fim de contornar as dificuldades da língua
Nas cartas de amor, que descaso! (…)
E terno, tímido e audaz o
Olhar, que às vezes de repente
Luzia com a lágrima obediente!
São soluções audazes que estão em consonância com a leitura moderna e, ao mesmo tempo, conservam, até onde é possível, a fidelidade ao original. Não à toa, Boris Schnaiderman supervisionou o trabalho.
Púchkin é arrojado em sua estética. Numa expressão que combina descrição, lirismo, digressão irônica e sentenciosidade, conduz a narrativa a seu bel prazer. À guisa de exemplo, o primeiro capítulo inicia com os pensamentos enfastiados de Onêguin indo ao encontro do tio adoentado; na segunda estrofe e nas seguintes se ocupa em nos pintar sua figura e a do meio em que circula, tece digressões variadas e só retoma o fio narrativo na estrofe 52.
Como se vê, há fundamento nos que aproximam esse expediente com o Tristam Shandy, de Sterne, ambas obras populares em seus países; tal fato, ao leitor comum daqui, talvez cause espécie.
Enriquecida com ilustrações do autor, a edição da Ateliê vem para engrandecer mais o catálogo de grandes clássicos traduzidos no país, e espera-se (como até hoje o segundo tomo de Orlando Furioso da mesma editora) que o segundo volume não tarde a sair do prelo.