Vivemos — só os tolos duvidam — em uma situação-limite. A realidade vacila. Os dias tremem e, só a muito custo, se sucedem. No clássico O escritor e seus fantasmas, livro de 1963, o argentino Ernesto Sabato já descrevia: “O homem de hoje vive em alta tensão, diante do perigo da aniquilação e da morte, da tortura e da solidão”. Todos nos sentimos, em um momento ou outro, no limite de nossas forças. A exaustão é o sentimento do presente. “É um homem de situações extremas, chegou aos limites últimos de sua existência ou está diante deles.”
Apesar dessa feroz constatação, Sabato continuou a escrever e a publicar. Onze anos depois, lançaria seu último romance, Abbadon, o exterminador. O medo do extermínio o perseguia, mas não o paralisava. Acreditava que, mesmo em momentos desalentadores, a literatura — se a levamos a sério, e não como um divertimento de beira de piscina — continua a ter uma função capital. Deve ser, ela também, uma literatura extrema, porque só assim pode sincronizar com esse homem que se desintegra. “A literatura que o descreve e o interroga só pode ser, portanto, uma literatura de situações excepcionais.” Em tempos de exceção, a ficção precisa se acostumar com o medo e o susto. Precisa tremer junto com eles.
Releio Sabato em um momento de desalento. Reencontro-o, como já fiz tantas vezes, para me alimentar. Vivemos hoje — e os psicóticos conhecem isso muito bem — o tempo da hiper-realidade. Tudo se expõe, tudo se mostra, tudo se exagera. A ênfase dá o tom de nossas vidas. “É a queda do ser no mundo, é a exteriorização e a banalização de sua existência”, descreve Sabato. “O homem ganhou o mundo, mas perdeu-se a si mesmo.” A realidade — sentimos — se torna grande demais. Torna-se massacrante. Já não sabemos manejá-la, diante do horror simplesmente já não sabemos o que fazer. O homem de hoje, como os loucos, vive em uma realidade sobrecarregada de objetos agressivos. Tudo se lança para fora — tudo nos esfaqueia. Coisas, números, preços, planilhas, balancetes: tudo se mede e se contabiliza. A Amazônia, em vez de uma imensa floresta, se torna uma chance de grandes negócios. Os migrantes, em vez de seres que sofrem, são vistos como obstáculos que devem ser afastados do caminho. As guerras — horror extremo — se assemelham, cada dia mais, a jogos de computador. A banalidade é outra marca desalentadora de nosso tempo.
“Lançado cegamente à conquista do mundo externo, preocupado tão somente com o manejo das coisas, o homem acabou por coisificar-se, caindo no mundo bruto em que rege o determinismo cego”, Sabato nos diz. A realidade se torna uma rocha, que devemos, como Sísifo, empurrar. A vida toma a forma de uma grande pedra de mármore, fria, pesada, insuportável. Ideias como felicidade e liberdade se tornam insuficientes, ou mesmo desprezíveis. Empurrados pelos objetos, pisoteados, vivemos “em ação”, repetindo os mesmos gestos e as mesmas palavras, mas sem sair do lugar. Sem, sequer, nos mover.
Às vezes, muitas vezes, o mundo parece ter enlouquecido. O irracionalismo e a insensatez dão as cartas. Muitos ainda reclamam que, desde o século 20, a literatura, depois de perder o equilíbrio e a clareza do realismo, tornou-se, ela também, insana. Os novos cânones comerciais incentivam a produção de uma escrita transparente, fiel à realidade e sensata. Lembra-nos Sabato, porém, que, em nosso mundo, “o irracionalismo é um indício indispensável de realidade”. Não se trata de desprezar o leitor, ou de se colocar acima dele. Recorda, então, o caso de Franz Kafka, em cuja escrita “os juízos têm rigor sintático, há coerência entre sujeito e predicado, mas essa coerência não vai além da frase, pois não há continuidade de raciocínio, mas a continuidade, ou lógica, própria dos sonhos”. Por mais que se tente limpar e organizar o real, ainda assim, apesar de todos os esforços, a palavra não captura as coisas. Por isso, só resta ao escritor de hoje sincronizar — o que não significa aceitar — com o caos.
“Críticos que prolongam a mentalidade racionalista do século 19 murmuram contra os romances ininteligíveis de nosso tempo”, Sabato escreveu ainda em meados do século 20. O que dizer da realidade de agora? O que esperar dos romances que a perseguem senão turbulência e desordem? Se os escritores querem dar conta do mundo — ainda que muito parcialmente — devem, antes de tudo, sobre ele sustentar o olhar. Não é cômodo, tampouco é amável — é, de fato, muito doloroso. Mas, em uma situação extrema como a nossa, de que outra maneira será possível capturar a vida?
Há muito sabemos que a literatura não é um espelho e, mesmo que fosse, ele já teria se estilhaçado diante do contemporâneo. A literatura é, antes de mais anda, um artefato humano. Lembra-nos Sabato que “o homem não é um objeto passivo e, portanto, não pode se limitar a refletir o mundo: é um ser dialético (como seus sonhos o provam), longe de refleti-lo, resiste a ele e o contradiz”. A relação entre o homem e a realidade é de luta. Em um momento extremo como o que vivemos, essa luta se torna ainda mais feroz. Daí o estado de alta tensão que nos adoece, mas que pode também nos energizar.
Se a realidade hoje nos parece fria e irrespirável, não podemos culpar os escritores e artistas. Diz Sabato: “Não é o artista que está desumanizado, não são Van Gogh e Kafka, mas a humanidade”. Propõe, assim, que o escritor — apesar de toda a degradação e todas as baixezas que o cercam — não deve se afastar da sujeira do mundo. Lembra, então, de Tolstoi, em que o pensamento vivia em desacordo com a ficção. “O Tolstoi mais autêntico não é o que moraliza em seus opúsculos sobre arte, mas o tortuoso e endemoninhado indivíduo que adivinhamos nas Memórias de um louco.” Prossegue: “O pensamento puro de um escritor é seu lado estritamente diurno, enquanto suas ficções participam também do mundo monstruoso de suas trevas”. Meter a mão na noite, sujá-la, impregná-la da escuridão que nos cerca: eis a única maneira de chegar a alguma sincronia com o real.