Quem visita cidades litorâneas conhece este típico souvenir: um pequeno navio dentro de uma garrafa de vidro. É interessante pensar na metáfora que esse objeto pode representar: o recipiente protege o navio dos perigos do oceano, mantém firme e intacta sua estrutura. Mas, ao mesmo tempo, o impede de conhecer verdadeiramente o mundo. A poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen é sobre o lado de fora da garrafa de vidro: um navio que se entrega inevitavelmente ao mar. E ficar à deriva é uma chance de olhar profundamente para si e para a vida.
Considerada uma das mais importantes poetas portuguesas, Sophia já recebeu prêmios como Camões (1999) e Reina Sofía de Poesía (2004). A Companhia das Letras publicou Coral e outros poemas em 2018, com organização de Eucanaã Ferraz, que também assina a apresentação do livro, fundamental para uma leitura mais consistente da obra. Em 2004, ano da morte da autora, a mesma editora publicou Poemas escolhidos, com seleção de Vilma Arêas. A segunda publicação, portanto, tenta chamar novamente a atenção do público brasileiro e promover a obra de Sophia para além do ambiente acadêmico. Por aqui, são exemplos de nossos contatos recentes com outras poetas portuguesas os livros Jóquei, de Matilde Campilho, publicado em 2014 pela Editora 34, e Um jogo bastante perigoso, de Adília Lopes, publicado no ano passado pela Moinhos.
Coral e outros poemas reúne produções dos livros Poesia (1944), Dia do mar (1947), Coral (1950), No tempo dividido (1954), Mar novo (1958), O Cristo cigano (1961), Livro sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972), O nome das coisas (1977), Navegações (1983), Ilhas (1989), Musa (1994), O búzio de cós e outros poemas (1997) e traz ainda os capítulos Arte poética, Poemas dispersos e Inéditos.
A leitura desse grande volume permite identificar especificidades temáticas e estéticas, de acordo com cada época. Além dos elementos do mar, aparecem nos poemas a mitologia grega, a morte, a eternidade, o autoconhecimento, o tempo e o espaço. Sophia também se interessa pelo exercício de nomear as coisas, um esforço filosófico que ora aproxima, ora afasta cada objeto de seu significado literal. Ao longo do livro, percebe-se uma forte sensibilidade política e, a partir de menções à filosofia grega, o interesse por valores como a justiça e a verdade.
Sophia nasceu em Portugal, em 1919. Para comemorar os 100 anos de nascimento da escritora, a editora portuguesa A Esfera dos Livros lançou sua primeira biografia, produzida por Isabel Nery. A infância próxima ao mar parece ter levado Sophia naturalmente à criação artística, e não se pode deixar de mencionar a importância dos temas marítimos para os portugueses de maneira geral, com reflexo nítido na cultura do país. Os poemas nos apresentam alguém que observa o mar e vivencia uma epifania diante dele. A força da descrição ajuda a formar imagens na mente de quem lê, como fotografias.
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E meu desprezo reina sobre o mar […].
Se é possível definir a figura do marinheiro que aparece nos versos de Sophia, seria um personagem que não vê grandes distinções entre si mesmo e o oceano. A natureza é, enfim, tudo o que fica depois que nós vamos embora.
[…] Abri minhas mãos como folhagens
Intacta a luz brotava das paisagens,
Mas na doçura fantástica das coisas
As minhas mãos queimavam-se e morriam […]
Os poemas têm ritmo e divisões bastante acentuados, que ajudam a conferir personalidade à obra como um todo, mas os textos em prosa também são extremamente densos e marcantes. Essa densidade está principalmente no aspecto conceitual, pois a forma da escrita é (apenas aparentemente) simples. Um exemplo é o belíssimo As grutas: “As imagens atravessam meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água. Estarão as coisas deslumbradas de ser elas?”.
Política
Sophia transita pela mitologia e pela natureza de uma maneira que já coloca sua poesia num patamar filosófico. Mas o livro também assume, entre uma página e outra, sua postura política e social. Assim como o mar, a política esteve presente na vida da autora. Ela atuou como militante contra a ditadura do Estado Novo português, e em 1975 foi eleita deputada constituinte após a Revolução dos Cravos. Também foi responsável por várias conferências contra o regime salazarista.
Essa experiência é evidente nos textos de Coral e outros poemas e traz à luz a importante relação entre a arte e a política. “O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma torre de marfim (…)”, diz um dos textos. A primeira coletânea de poemas foi escrita durante a Segunda Guerra Mundial. Mas a atenção às condições do mundo e de seu país não está ausente das outras obras.
Um etnólogo diz ter encontrado
Entre selvas e rios depois de longa busca
Uma tribo de índios errantes
Exaustos exauridos semimortos
Pois tinham partido desde há longos anos
Percorrendo florestas desertos e campinas
Subindo e descendo montanhas e colinas
Atravessando rios
Em busca do país sem mal —
Como os revolucionários do meu tempo
Nada tinham encontrado.
Brasil
Sophia tinha uma clara relação com o Brasil. Por aqui, além das duas publicações, seus poemas aparecem no disco Mar de Sophia (2006), de Maria Bethânia, misturados a outras composições e com participação de Naná Vasconcelos. Também há referências a poetas brasileiros em seus poemas, como Murilo Mendes e Manuel Bandeira. Além disso, Sophia publicou O Cristo cigano, em 1961, inspirada em João Cabral de Melo Neto. Trata-se de um conjunto de poemas que reconstitui uma lenda sevilhana ligada ao escultor Francisco Antonio Ruiz Gijón, que a autora conheceu por meio do poeta brasileiro. Eles se conheceram em 1958, em Sevilha, onde ele morava.
Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal
Quando Helena Lanari dizia “coqueiro”
O coqueiro ficava muito mais vegetal.
Sobre escrever
Ao falar sobre poesia, Sophia assumia uma postura de quem não via outra alternativa para a vida senão a escrita. A poesia é a própria vida, como ela sinaliza em A casa térrea:
Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo
[que não soubeste ser
Que não seja transferência nem refúgio
Nem deixes que o poema te adie ou divida: mas que seja
A verdade de teu inteiro estar terrestre
Se pensarmos metaforicamente, o mar em Coral e outros poemas pode representar a realidade, as emoções, tudo aquilo que nos alcança sem dar chance de escapatória e nos eleva o desejo de expressão, com a mesma força das ondas agitadas. Como a poesia, que, disse a poeta, “pede-me a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. (…) Pois a poesia é minha explicação para o universo”.