Territórios em conflito

A literatura infantil tem sido alvo do conservadorismo nos tempos atuais
24/08/2019

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Monteiro Lobato foi responsável pela firmação de um projeto literário para a infância brasileira, num cenário em que a originalidade artística desse segmento se reservava à tradução de obras de outros países, uma vez que nossa literatura infantil estava ainda muito apegada à relação com a escolarização. Editou, escreveu, traduziu e, acima de tudo, construiu um projeto estético de literatura para a infância que previa a criança como protagonista, e aproximava real e fantasia como potência na construção do universo ficcional. Além de tudo isso, deixou a gerações de leitores e, especialmente de escritores, um legado de escrita que não subestima a criatividade e a inteligência da criança.

Conhecidos como “filhos de Lobato”, autores responsáveis pelo conhecido boom da literatura infantil na década de 1970 do século passado, em pleno período ditatorial, desdobraram as lições lobatianas: dali saíram os reis mandões de Ruth Rocha; as crianças não-silenciáveis de Ana Maria Machado; as fadas nada típicas de Sylvia Orthof; e as crianças e animais na experiência da dor de existir em um ambiente opressor de Lygia Bojunga. As relações da infância com o adulto, seus cuidados e opressões, são encenadas ora em tom humorístico, ora como condição desigual na roda de existir no mundo das regras, para o qual a criança é convidada a adequar-se. A literatura infantil produzida no referido período passou ao largo dos olhares da censura.

Se na década de 1970 do século 20 a censura manteve-se distante desse tipo de obra que ali se produzia, não podemos dizer o mesmo em relação aos tempos atuais. Com grande parte da produção de livros ainda muito próxima de uma escrita prescritiva de valores e comportamentos dirigidos à infância, a literatura infantil tem sido alvo de cerceamentos graves quando se afasta — na leitura dos moralistas — daquelas que deveriam ser as diretrizes para a educação das crianças. A retirada de títulos de acervos comprados pelos governos, em diferentes esferas, mostra um cenário em que o conservadorismo instala suas rédeas como tuteladoras da infância. Vivenciamos, nos últimos dois anos, polêmicas em torno de textos (alguns já balzaquianos), frente às quais o posicionamento crítico ainda desampara muito os professores que estão na linha de frente desse processo: o conto A triste história de Eredegalda, do livro Enquanto o sono não vem, de José Mauro Brant, foi acusado de incentivar incesto; Meninos sem pátria, de Luiz Puntel, seria propagador de ideologia comunista; O menino que espiava pra dentro, de Ana Maria Machado, incentivaria o suicídio; e, agora, A bolsa amarela, de Lygia Bojunga, no qual me deterei um pouco mais, incita a “ideologia de gênero”.

Numa realidade em que a literatura infantil e juvenil não têm lugar — não estão nos currículos de Letras e Pedagogia da maioria das universidades, especialmente as públicas — e na qual todos se acham capazes de opinar na educação das crianças, não me espanta ser o livro de Lygia Bojunga o novo alvo: acho inclusive que demoraram a chegar a ela. Lygia construiu um percurso estético que é um verdadeiro projeto de formação de leitores no sentido mais lato: seus primeiros textos são dirigidos (será?) à infância: Os colegas, Angélica, A casa da madrinha, O sofá estampado, A bolsa amarela. Depois, o destinatário parece ir crescendo, principalmente em experiência, conforme a obra da escritora avança: O meu amigo pintor, Nós três, Tchau, para citar algumas. Temas duros da existência estão ali: separação dos pais, abuso sexual, abandono, orfandade — tudo numa escrita densa, quase teatral, em que o narrador (personagem ou não) mais mostra do que narra. São as personagens que carregam a potência da narrativa e da dor que está nela representada.

Restringir a literatura à ideia de forma de conhecimento pode ser um perigo se as diretrizes de transmissão desse conhecimento passam por um conceito autoritário de educação.

A bolsa amarela traz a história de Raquel, uma menina criada no meio de adultos — pais e irmãos — em uma realidade social em que sua presença agrava o quadro de dificuldade financeira de uma família que não esperava outros filhos quando a menina nasceu. À mercê desse universo de rejeição, a criança narradora declara, logo nas primeiras linhas, o desejo de esconder três grandes vontades: a vontade de crescer, a de ter nascido menino e a de ser escritora. A justificativa do vereador de uma cidade do interior de São Paulo para a representação contra a adoção da obra pela rede municipal de educação é a leitura literal da dita vontade de ter nascido menino que, segundo ele, representaria a “ideologia de gênero” e seria uma afronta aos valores morais da família.

Ora, Antonio Candido, em seus textos O direito à literatura e A literatura e a formação do homem, já nos alertava que a literatura não é apenas uma forma de conhecimento, apesar de o ser também; o crítico resguarda à arte literária o lugar de criação autônoma de estrutura e significado, preservando o espaço de representação do objeto em si; e ainda o conceito de literatura como forma de expressão de indivíduos e grupos, focalizando o espaço da autoria e de sua forma de ver e representar o mundo. Portanto, restringir a literatura à ideia de forma de conhecimento pode ser um perigo se as diretrizes de transmissão desse conhecimento passam por um conceito autoritário de educação.

A literatura, como fenômeno artístico, não ensina segundo preceitos moralistas. Sua forma de conhecimento diz respeito a uma investigação simbólica das potencialidades humanas, e não a uma ferramenta prescritiva de comportamentos, sejam eles quais forem. Numa relação dialética com o real, aproximando-se dele e também transfigurando-o, o texto literário encena experiências que são humanas, recriando-as esteticamente, e não as repetindo como informação.

A interpretação do vereador sobre a vontade de Raquel de ter nascido menino como uma defesa do que chama de “ideologia de gênero” baseia-se na leitura literal da primeira página da obra, mas também revela uma concepção de literatura infantil como produção de apoio à prática pedagógica, que não está apenas na esfera do senso comum, do qual o político faz parte. A ausência de um debate qualificado sobre a produção literária para crianças — e também jovens — deixa professores e alguns familiares bem-intencionados desprovidos de instrumental teórico para a defesa do direito das crianças ao acesso à literatura.

As vontades de Raquel são, na verdade, metáfora de seu desejo de liberdade e, na dificuldade em se fazer compreender pelos adultos, resolve inventar histórias e personagens, no entendimento de que o espaço da ficção é um território de prática da liberdade, projeto que acaba frustrado também pelos adultos, que desqualificam seu universo fabular. Lygia já encenava a censura, já resistia e já reinventava as formas literárias pelas mãos de Raquel. Não me parece surpreendente que tenham chegado aos seus textos para impor-lhes rédeas.

O papel dos estudos literários neste momento é trazer a literatura infantil — ainda tão confundida com qualquer livro para a infância — para a crítica especializada. A literatura infantil brasileira (ela, a LITERATURA) é uma das mais premiadas do mundo, e Lygia Bojunga, com textos que podem e devem ser lidos por crianças e adultos, é uma das maiores referências desde a publicação de seu primeiro livro. Assim como o fez Raquel, será preciso recriar espaço para a leitura de textos, especialmente pelos leitores mais jovens, que não encenem a conciliação de espaços no mundo, mas que permitam a busca incessante pela autonomia do pensamento.

Rascunho