Poemas de Derek Walcott

Leia os poemas traduzidos "Rua Bleecker, verão", "Jundus", "Estrela", "Para Norline ", "Hart Crane ", "Poema nº 54 do livro White Egrets" e "Alto verão I"
Derek Walcott, autor de “Omeros”
27/05/2019

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert

Bleecker Street, summer

Summer for prose and lemons, for nakedness and languor,
for the eternal idleness of the imagined return,
for rare flutes and bare feet, and the August bedroom
of tangled sheets and the Sunday salt, ah violin!

When I press summer dusks together, it is
a month of street accordions and sprinklers
laying the dust, small shadows running from me.

It is music opening and closing, Italia mia, on Bleecker,
ciao, Antonio, and the water-cries of children
tearing the rose-coloured sky in streams of paper;
it is dusk in the nostrils and the smell of water
down littered streets that lead you to no water,
and gathering islands and lemons in the mind.

There is the Hudson, like the sea aflame.
I would undress you in the summer heat,
and laugh and dry your damp flesh if you came.

Rua Bleecker, verão

Verão para prosa e limões, corpos nus e preguiça,
para o eterno ócio do regresso imaginado,
para eventuais flautas e pés descalços, e o quarto de agosto
de lençóis amarfanhados e o sal dominical, ah, violino!

Quando espremo os entardeceres de verão, já se vai
um mês de acordeões nas ruas e chuveiros
se cobrindo de pó, pequenas sombras fugindo de mim.

É música que abre e fecha, Italia Mia, na Bleecker,
ciao, Antônio, e o choro molhado das crianças
rasgando em tiras de papel o céu cor-de-rosa;
anoitece nas narinas e o cheiro de água
descendo ruas imundas que conduzem a água alguma,
e colhendo, na mente, ilhas e limões.

Há o rio Hudson, como um mar em chamas.
Eu vou despi-la sob o calor do verão,
e rir e secar sua carne úmida, se rolar.

…..

Sea Grapes

That little sail in light
which tires of islands,
a schooner beating up the Caribbean

for home, could be Odysseus,
home-bound on the Aegean,
that father and husband’s

longing, under gnarled sour grapes, is
like the adulterer hearing Nausicaa’s name
in every gull’s outcry;

This brings nobody peace. The ancient war
between obsession and responsibility
will never finish and has been the same

for the sea-wanderer or the one on shore
now wriggling on his sandals to walk home,
since Troy lost its old flame,

and the blind giant’s boulder heaved the trough
from whose ground-swell the great hexameters come
to finish up as Caribbean surf.

The classics can console. But not enough. 

Jundus

Aquela diminuta vela sob a luz
que, cansada de ilhas,
escuna enfrentando o Caribe

buscando o lar, poderia ser Odisseu,
bordeando para seu destino no Egeu,
aquela saudade de marido

e pai, sob videiras azedas e retorcidas, é
como o adúltero ouvindo o nome de Nausícaa
em cada guincho das gaivotas;

Mas a ninguém isso traz paz. A antiga guerra
entre obsessão e responsabilidade
jamais chegará a termo, e tem sido a mesma

para o que vaga pelos mares e para o que está em terra
gingando em suas sandálias a caminho de casa,
desde que Troia perdeu sua antiga chama,

e o seixo do gigante cego ergueu a cuba
de onde vieram os grandes hexâmetros
para terminar como ondulações caribenhas.

Os clássicos consolam. Mas não o bastante.

…..

Star

If, in the light of things, you fade
real, yet wanly withdrawn
to our determined and appropriate
distance, like the moon left on
all night among the leaves, may
you invisibly delight this house,
O star, doubly compassionate, who came
too soon for twilight, too late
for dawn, may your faint flame
strive with the worst in us
through chaos
with the passion of
plain day.

Estrela

Se, na luz das coisas, você se
dissolver, ainda que debilmente recuada
para nossa determinada e apropriada
distância, como a lua, deixada por toda
a noite entre as folhas, que possa você,
invisivelmente, deleitar esta casa,

Ó estrela de redobrada compaixão, que chegou
muito cedo para o crepúsculo e muito tarde
para a aurora, que possa seu frágil brilho
lutar com o que há de pior em nós,
atravessando o caos,
com a paixão
do pleno dia.

…..

To Norline

This beach will remain empty
for more slate-colored dawns
of lines the surf continually
erases with its sponge,

and someone else will come
from the still-sleeping house
a coffee mug warming his palm
as my body once cupped yours,

to memorize this passage
of a salt-sipping tern,
like when some line of a page
is loved, and it’s hard to turn. 

Para Norline[1]

Esta praia permanecerá vazia
por mais auroras cor de ardósia
de linhas que as ondas o tempo todo
apagam com suas esponjas,

e uma outra pessoa virá
saindo da casa ainda dormente
uma caneca de café aquecendo as mãos
do jeito que meu corpo antes se encaixava no seu,

para memorizar esta passagem
de uma gaivota engolindo sal,
como quando amamos muito alguma
linha de uma página, e sofremos para virá-la.

…..

Hart Crane

He walked a bridge where
Gulls’ wings brush wires and sound
A harp of still in air,
Above the river’s running wound.
Natural and architectural despair.
Life was a package in his restless hand,
Traffic of barges below, while wind
Rumpled his hair like an affectionate teacher.

Liberty offered God a match.
Dusk smoked. There was no cure,
The bridge, like grief whined in the air
Marrying banks with a swift signature.
The bums spat, cursed, scratched.
O distant Mexico, Quetzalcoatl
Not, by gum, Wrigley’s and Spearmint, and spitting jaws
O the red desert with nomadic laws.

Bye, bye to Brooklyn,
The bay’s lace collar of puritan America
And bye, bye, the steel thin
Bridges over barges, the wharf’s hysteria,
The canyons of stone.
The whirlpool smiled — “Knowledge is death alone.”

The sea was only ritual, he had
Already seen completely go mad
In the asylum, metaphor. He stood
From Brooklyn, on the brink
Of being, a straw doll blown
From Manhattan to Mexico to sink
Into that sea where vast deliriums drown.

Hart Crane[2]

Ele caminhou por um passadiço no qual
As asas das gaivotas roçavam fios e soavam
Como uma harpa, em pausa, no ar,
Sobre as feridas que corriam no rio.
Natural e arquitetônico desespero.
A vida, um pacote em sua desassossegada mão,
Barcaças abaixo, passando, enquanto o vento
Amarfanhava seu cabelo como se fosse um professor afetuoso.

A liberdade ofereceu a Deus um desafio.
No entardecer, a fumaça. Não havia cura,
O passadiço, como o lamento da tristeza no ar
Margens casadas com uma suave assinatura.
Os vagabundos cuspiram, xingaram, esfolaram.
Ó México distante, Quetzalcoatl
Não, chicletes, balas Wrigley de menta e as mandíbulas cuspidoras
Ó, o deserto vermelho e suas leis nômades.

Adeus, Brooklyn,
O colar de rendas da baía da América puritana
E adeus, delgadas pontes
De ferro sobre as barcaças, a histeria do cais,
Os cânions de pedra.
O rodamoinho sorriu — “A sabedoria morreu sozinha.”

O mar era apenas um ritual, ele já
Sabia que estava completamente enlouquecido
No asilo, a metáfora. Ele ergueu-se
Do Brooklyn, no limite
Do ser, um boneco de palha veio num sopro
De Manhattan ao México, para submergir
Naquele mar onde vastos delírios se afogaram.

…..

#54 from White Egrets

This page is a cloud between whose fraying edges
a headland with mountains appear brokenly
then is hidden again until what emerges
from the now cloudless blue is the grooved sea
and the whole self-naming island, its ochre verges,
its shadow-plunged valleys and a coiled road
threading the fishing villages, the white, silent surges
of combers along the coast, where a line of gulls has arrowed
into the widening harbor of a town with no noise,
its streets growing closer like print you can now read,

two cruise ships, schooners, a tug, ancestral canoes,
as a cloud slowly covers the page and it goes
white again and the book comes to a close. 

Poema nº 54 do livro White Egrets

Esta página é uma nuvem entre as bordas desgastadas
das quais um pedaço de terra com montanhas aparece em pedaços
e então se esconde de novo até que o que novamente emerge
do agora azul sem nuvens é o mar cheio de estrias
e a ilha inteira, com seu nome, suas orlas de cor ocre,
seus vales mergulhados em sombras e uma estrada sinuosa
ligando as aldeias de pescadores, as brancas e silenciosas
ondas embranquecidas ao longo da costa, onde um grupo de gaivotas
desceu como flecha na larga baía de uma cidade sem ruídos,
de ruas apertadas como as de um texto que se consegue ler,
dois grandes navios, escunas, um rebocador e as canoas ancestrais,
enquanto uma nuvem cobre vagarosamente a página e ela fica,
mais uma vez, branca, e o livro chega ao fim.

…..

Midsummer I

The jet bores like a silverfish through volumes of cloud —
clouds that will keep no record of where we have passed,
not the sea’s mirror, not the coral busy with its own
culture; they aren’t doors of dissolving stone,
but pages in a damp culture that come apart.
So a hole in their parchment opens, and suddenly, in a vast
dereliction of sunlight, there’s that island known
to traveller Trollope, and the fellow traveller Froude,
for making nothing. Not even a people. The jet’s shadow
ripples over green jungles as steady as a minnow
through seaweed, our sunlight is shared by Rome
and your white paper, Joseph. Here, as everywhere else,
it is the same age. In cities, in settlement of mud,
light has never had epochs. Near the rusty harbor
around Port of Spain bright suburbs fade into words —
Maraval, Diego Martin — the highway long as regrets,

and steeples so tiny you couldn’t hear their bells,
nor the sharp exclamations of whitewashed minarets
from green villages. The lowering window resounds
over pages of earth, the canefields set in stanzas.
Skimming over an ochre swamp like a fast cloud of egrets
are nouns that find their branches as simply as birds.

It comes too fast, this shelving sense of home —
canes rushing the wing, a fence; a world that still stands as
the trundling tires keep shaking and shaking the heart.

Alto verão I

O jato fura como uma traça as densas nuvens —
nuvens que não guardarão registro de por onde passamos,
nem o reflexo do mar, nem do coral ocupado com suas próprias
civilizações; elas não são portas de rochas que se dissolvem,
mas páginas de uma cultura úmida e distinta.
Então abre-se um buraco no pergaminho, e de repente, sob um grande
descuido da luz solar, há aquela ilha conhecida
do viajante Trollope, e do colega viajante Froude[3],
por nada gerar. Nem mesmo um povo. A sombra do jato
ondula sobre florestas verdes tão firmes quanto um peixe
através de algas, nossa luz do sol é compartilhada por Roma
e por seu relatório, José. Aqui, como em toda parte,
é um só tempo. Nas cidades, nas colônias de barro,
a luz jamais teve eras. Perto da enferrujada baía que
envolve Port of Spain, bairros elegantes se desfazem em palavras —
Maraval, Diego Martin — as autoestradas, longas como desculpas,
e campanários tão pequenos que nem se escutam os sinos,
nem as ácidas manifestações dos branquíssimos minaretes
das verdejantes aldeias. A janela que se fecha ressoa
nas páginas da terra, canaviais organizados em versos.
Roçando sobre um pântano ocre, como uma ligeira revoada de garças,
os substantivos, que encontram seus galhos tão facilmente quanto os pássaros.
Isto chega bem rápido, esta sensação engavetada de lar —
varas apressando a asa, uma cerca; um mundo que ainda resiste enquanto
os pneus que giram seguem agitando e agitando o coração.

 

[1] Norline Metivier foi a segunda esposa (de três) de Walcott. Eles estiveram juntos entre 1976 e 1993.

[2] O poeta modernista norte-americano Hart Crane (1899-1932), uma das influências de Walcott no início de sua carreira, morreu afogado no Golfo do México, após saltar do navio em que viajava de volta para Nova York, num provável ato de suicídio. O corpo jamais foi encontrado.

[3] Referência aos historiadores e ensaístas britânicos Anthony Trollope (1815-1882) e James A. Froude (1818-1894), entusiasmados defensores do imperialismo britânico.

 

Derek Walcott
Derek Walcott (1930-2017), prêmio Nobel de literatura de 1992, descendente de negros e brancos, nasceu na ilha caribenha de Santa Lúcia, ex-colônia francesa e inglesa (alternadamente, muitas vezes). Walcott se sentia legítimo herdeiro tanto da tradição africana quanto da europeia, e escrevia livremente sobre seu quintal e sobre o mundo. Sua obra mais conhecida é o poema épico Omeros, que ecoa a Ilíada no ambiente caribenho (publicado no Brasil em bela tradução de Paulo Vizioli). Finalmente, cabe dizer: a única constante na poesia de Walcott é a presença do mar.
André Caramuru Aubert

Nasceu em 1961, São Paulo (SP). É historiador formado pela USP, editor, tradutor e escritor. Autor de Outubro/DezembroA vida nas montanhas e Cemitérios, entre outros.

Rascunho