Em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco disse que por diversas vezes “somos compelidos a trocar a ficção pela vida — a ler a vida como se fosse ficção, a ler ficção como se fosse a vida”. Seu intuito final era o de chamar a atenção para o que é ou não realidade em uma obra de ficção. É comum que tal fronteira não seja tão clara.
O rei das sombras, de Javier Cercas, parece levar a premissa de Eco às últimas consequências. O autor espanhol transita entre o real e a ficção, manipulando elementos da vida, da realidade de seu país, fazendo simultaneamente ficção. Porém, não qualquer ficção. A obra aborda a Guerra Civil Espanhola, um dos confrontos mais cruéis do século 20 — um sangrento conflito em um passado nem tão remoto. E o faz por meio da apresentação de Manuel Mena, tio-avô do autor, membro da Falange, partido fascista da década de 1930, que, posteriormente, se une a Francisco Franco, o general da extrema-direita vitoriosa que inaugura uma severa ditadura a persistir por quase quatro décadas.
Até aí, tudo bem. Talvez um leitor fique curioso com a demasiada atenção dispensada a Manuel Mena, personagem praticamente invisível do passado espanhol. Seu nome dificilmente será encontrado nos autos, nos anais da história. Quiçá em uma placa de um memorial de guerra, construído em sua época como homenagem aos vencedores, artifício a relembrar o sangue derramado em nome da vitória. Eis que se inicia a literatura…
Javier Cercas é autor consagrado. Há poucos anos publicou A velocidade da luz. Mas, antes, assina o rol dos grandes escritores da contemporaneidade com Os soldados de Salamina. O sucesso de sua obra rendeu uma adaptação para o cinema. A temática, Guerra Civil Espanhola. Nela, Cercas preocupa-se não em desvelar a dignidade dos republicanos vencidos. Em seu lugar, escava o passado de Rafael Sánchez Mazas, um dos fundadores da controversa Falange. O detalhe está justamente que Cercas discorre sobre um escritor homônimo diante da angústia de escrever a obra. Interessante observar como tais angústias, enfim, a vida comum do autor, interferem de modo irrevogável na produção do texto final. O escritor se embrenha na realidade em uma espécie de obsessão criativa — a conter o inevitável compromisso com a realidade. O resultado é surpreendente.
Em O rei das sombras, pode-se observar um interessante paralelo à obra anterior. Novamente, o personagem principal é o próprio autor que tem diante de si a necessidade de escrever sobre um ícone da guerra em seu vilarejo, o tal do Manuel Mena. Interessante é que a necessidade de adentrar no passado de seu vilarejo da Estremadura, Ibahernando, aflora no momento em que se defronta com o amor e carinho que guarda pela sua idosa mãe, fragilizada pela viuvez recente. Ela é sobrinha de Mena, por quem tinha verdadeira admiração.
A partir de então, o autor de O rei das sombras defronta-se com o compromisso de reavivar um passado real, apresentando-o ao leitor. Cercas narra o dilema vivido pelo personagem Cercas em sua pesquisa. Como um verdadeiro detetive — experiente, pois faz constante alusão à sua vivência em Os soldados de Salamina — revolve entulhos da história através de levantamento de documentos e, principalmente, consulta a memória de pessoas de seu vilarejo, Ibahernando, com o qual tem uma relação bastante paradoxal. Aqui, o escritor Cercas tem de lidar com a afetividade de amigos de Mena, parentes, enfim, pessoas queridas. É nesse ponto que a realidade não dá conta, adentrando a ficção.
Dentro da ficção
Somente a ficção se torna capaz de expor tais sentimentos. Somente ela tem o poder de redimensionar a importância de um jovem alferes de 19 anos, apagado em meio à absurda quantidade de sangue derramada na história da guerra espanhola. O escritor Cercas e o personagem Cercas sabem disso. O primeiro o faz construindo o relato em O rei das sombras. O segundo, expondo, como personagem, as angústias da investigação sobre a vida de um falangista, tendo de lidar com memórias e mais memórias que não podem ser medidas pela métrica da história e seus documentos.
Essa lógica está presente em toda a obra. Por exemplo, quando o personagem Cercas contrasta documentos da época com relatos de sua mãe e de um antigo amigo da família. Resultado: vê-se diante da necessidade de pesquisar ainda mais outros documentos até constatar a precisão da memória. Esta, porém, mantém-se impecável em grande medida… pela afetividade.
O rei das sombras possui uma narrativa em primeira pessoa. É digno de nota a alternância dos capítulos. Ora é narrada a vida do personagem Javier Cercas, sua angústia com a pesquisa sobre Manuel Mena; a redescoberta do significado da guerra para a Espanha e o seu peso na história; o contato com fatos que supostamente motivaram o ingresso de pessoas comuns na Falange; a empatia com relatos coletados nas inúmeras entrevistas; sua relação com outros personagens (também existentes na vida real, como o diretor de cinema David Trueba, e o ex-euro-deputado socialista Alejandro Cercas) etc. Ora é exposto o dado histórico, como a descrição das batalhas; dos caminhos traçados por Mena em território espanhol; o avanço do franquismo em sua máquina de guerra; o apoio nazista etc.
Tais capítulos são apresentados de modo alternado. Contêm uma organização intrigante para o leitor à medida que, por exemplo, se atém ao relato histórico propriamente dito e o faz por meio de dados coletados no capítulo anterior, em que se descreve a angústia de Cercas em sua busca por informações sobre Manuel Mena. Retomando Eco, mencionado no início desse texto, não seria exagerado afirmar que, n’O rei das sombras, a realidade depende da ficção; não o contrário, como inicialmente pareceria óbvio.
Nos capítulos que talvez possam ser aqui denominados de pessoais, o personagem Javier Cercas trata Mena como seu tio-avô. Nos capítulos históricos, Mena é tratado como tio-avô do escritor Javier Cercas — sugerindo uma impessoalidade, a despeito da primeira pessoa na narrativa, presente nos dois casos. Novamente, se está diante do liame entre ficção e realidade trabalhado com uma destreza rara na literatura. Mediante tal recurso, fica ao leitor a sensação de estar perante dois livros completamente distintos. Mas é impossível separá-los, pois a obra contém um todo indivisível.
Um último ponto que merece destaque é a permanente afirmação do personagem Javier Cercas quanto ao fato de que não é ficcionista e, portanto, não escreveria uma ficção sobre a vida de Manuel Mena. Tal juízo de seu trabalho se repete em diversos instantes. No entanto, em uma única passagem, nada desimportante, ele admite o seu inevitável caráter ficcionista, após ter entrevistado uma das pessoas mais próximas de Mena:
[…] com o ruído monótono do carro deslizando no asfalto noturno e irregular da rodovia, eu me entretive pensando que era verdade que nós, ficcionistas, fantasiamos e que a morte é uma coisa certa, mas também é verdade que, embora Manuel Mena tivesse sido um vencedor da guerra, as pessoas haviam se limitado a contar lendas sobre ele e ninguém escrevera sua história.
No pequeno fragmento acima o astuto escritor Javier Cercas dribla a realidade. Encara-a e diz-lhe que não basta!
Por meio da ficção, Javier Cercas, em O rei das sombras, toca sensivelmente a realidade. Dá a ela um tom mais generoso, entretanto, e, sobretudo, não menos verdadeiro. Fazer isso por meio da escrita é um desafio. Alguém o aceitou. Esse alguém o superou. A literatura agradece. A história agradece. A realidade agradece.