No século 19, Rimbaud fez um tipo de poesia em que o leitor não percebia mais facilmente o eu lírico do poema. Essa elaboração poética, que se manifestou muitas vezes de forma prosaica, fez do jovem escritor francês uma importante referência do que hoje chamamos de modernismo. Encontramos no decorrer do século 20 uma série de obras poéticas que também se empenharam na problematização do eu, tanto pelo viés poiético (formal), como fez Rimbaud, como pelo viés filosófico, como fez, no Brasil, por exemplo, Augusto dos Anjos. O fato é que o lirismo centrado no eu — herança que não deve ser colocada apenas na conta do Romantismo — alicerçou também a obra de poetas que modernizaram a expressão artística brasileira, influindo em nossa elaboração do mundo, e chega ainda hoje à poesia de nossos contemporâneos.
Drummond publicou três livros até chegar à poesia do nós e expandir nossa reflexão sobre o mundo moderno com poemas não apenas sociais, mas também, paradoxalmente, humanizadores niilistas. João Cabral de Melo Neto atribuiu aspereza à voz do eu amalgamando a espessura de uma linguagem rígida com a aspereza dos homens cantados em seus textos pretensamente antilíricos. Cecília Meireles retomou a subjetividade e o direito de cantar o eu por meio de melodias sinestésicas, mesmo percebendo-se sozinha entre os pares.
Seja qual for o grau de reelaboração da presença-ausência do eu, o que se nota em nossa poesia é um intangível exercício de construir sentidos, imagens e outras realidades a partir desse filtro do mundo que é o próprio poeta e a voz que ele forja para se expressar.
Na poesia atual, muito mais fragmentada no que diz respeito à unidade de uma obra poética, vemos em alguns autores certa angústia ao tentar dissimular o eu. No caso de Cosmogonias, de Otto Leopoldo Winck, a angústia está em tentar dissimular um eu orgulhoso de ser poeta (como se isso fosse preciso!). E a arquitetura escolhida pelo autor foi entrelaçar o que está na ordem do eu lírico com outros “eus” importantes nas narrativas ocidentais, tais como Cristo, ou Deus encarnado, poetas consagrados, como Dante, artistas populares e outros que me escapam.
O primeiro sintoma dessa dissimulação parece estar no título, que remete a origens do universo, fazendo-nos pensar, irremediavelmente, num elemento criacionista. A confirmação desse sintoma está na série que o poeta intitula Theophorus. Nesta série, esparramada em seis poemas, notamos uma deidade no fazer poético. Um verso que se repete em cinco dos seis poemas é “Para quem tem um deus dentro de si”, que ocorre uma vez com cesura, dando origem a dois versos. Esse amalgama entre um eu que faz versos e a própria peregrinação do cristo fica ainda mais evidente no poema Tudo é deserto:
Como os santos e os profetas,
de repente eu me vi arrastado para o deserto
[…]
o deserto foi a minha iniciação.
Ainda: no poema que dá título ao livro, Cosmogonias, lemos o verso “Diante do abismo, nasce um deus”. E na série Theophorus, já mencionada, vemos que o poeta se coloca à beira do abismo em várias ocasiões, aproximando, assim, o surgimento de deus, ou dos deuses, e o do poeta.
Nisso consiste, a meu ver, um ponto angustiado do livro. Mas de uma angústia que escapa ao poeta. A estratégia é dissimular uma desimportância onde na verdade opera um enaltecimento. Ao mesmo tempo em que o poeta grafa deus em minúsculas, tentando atribuir mundanidade ao mesmo, ele se coloca como centro do universo arrastado para ser iniciado no deserto. Ou seja, uma narrativa que está sendo mundanizada, a divina, serve de contraparte para a “ascensão” do poeta.
Porém, outra interpretação da série Theophorus poderia nos levar a poetas como Hilda Hilst e Adélia Prado, que materializaram deus em lugares onde em princípio ele não estaria para transarem com a própria ideia ou matéria divina. Isso que, numa perspectiva moralista, insinua-se agressivo é na verdade a forma mais visceral de experienciar deus. Hilda reflete sobre isso junto à ciência e a um misticismo pagão. Adélia quer ver deus junto aos prazeres da vida, num torresmo, por exemplo.
Convocando essas poetas para conversar com Cosmogonias, vemos surgir uma potência no livro de Otto Winck que demanda esforço demasiado para perceber. Aliás, é importante ser dito, o livro exige em excesso do leitor que quiser ler a obra como uma unidade, e faz isso por lançar mão de referências não muito óbvias e não deixar pistas suficientes para recuperá-las (isso pode prejudicar o efeito estético).
Mundano e divino
Mas voltemos à interpretação. No poema Theohorus IV, único da série em que não lemos que deus está dentro do eu lírico, nos deparamos com uma sensualização da ideia de deus, ou da busca pela experiência divina: “Vivo/ à beira/ do abismo/ O alvo/ é a graça,/ a luz,/ o voo./ O risco,/ a queda,/ a treva,/ o enjoo./ O gozo/ é o jogo”. Esse poema pode servir como chave para leituras de outros tantos presentes no livro, onde fica mais bem trabalhado o amalgama de deus com os defeitos e prazeres do mundo, como fez muitíssimo bem Adélia Prado no livro Misereres (2014).
Se no livro da poeta mineira vemos que há uma renúncia ao deus virtuoso por este afastar o eu lírico dos prazeres mundanos e se vemos também um desejo de que deus esteja na carne do mundo palpável e errante, no livro de Otto Winck notamos que deus também pode estar nas calçadas sujas, nos bares, nos seios de mulheres, nas artes, nos conflitos entre os povos e no próprio suicídio, vide poemas como Confiteor, Torquatamente, Rosa da Palestina ou Sacramento (talvez o poema mais bonito do livro).
Mas o ponto alto nessa arquitetura de atribuir mundanidade ao eu divino e onipresença ao eu poético é o poema Noturno, em que vemos uma libertação da ideia dantesca de conhecimento e acolhimento da verdade divina quando o poeta se encontra frente à morte:
Mas agora é preciso que eu vá
— e que eu vá sozinho.
Sem nenhum amparo, nenhum roteiro, nenhum Virgílio.
[…]
Dama dos abismos, aqui estou
[…]
abre os braços brancos para mim […]
a vastidão incalculável do teu ventre, o teu sexo
túrbido e tépido.
Diferente de Dante, que ainda clama pela sabedoria divina no último canto, o poeta em Cosmogonias transa com a morte encarnando o conhecimento sublime em zonas erógenas, aproximando-se não apenas da poesia de Adélia Prado, mas também da tradição mais objetiva encabeçada por Drummond. Com a diferença de que este imprimiu linguagem muito mais concreta e acessível para revelar sua escolha pela estrada pedregosa e pela compreensão dolorida do mundo moderno.
Feitos alguns esforços interpretativos e alguns malabarismos imaginativos que um livro exigente nos impõe, as portas da percepção e fruição de bons poemas no livro de Otto Leopoldo Winck estão abertas.