Já se sabiam algumas informações sobre Nelson Mandela (1918-2013), muito por conta da autobiografia Longa caminhada até a liberdade (1994). Mais de duas décadas depois, duas novas obras mostram que ainda há muito a ser descoberto e estudado sobre o primeiro presidente eleito democraticamente na África do Sul.
Em 2018, por ocasião do centenário de Mandela, ao menos dois livros sobre Madiba — como ele era conhecido — foram lançados no Brasil. A cor da liberdade — Os anos de presidência, publicado pela Zahar, e Cartas da prisão de Nelson Mandela, que saiu pela Todavia.
Em 2019, a leitura das obras permanece fundamental. Dois são os motivos para isso: neste ano comemoram-se 25 anos do início da presidência da República de Nelson Mandela na África do Sul, primeiro governo do tipo após mais de 50 anos de apartheid, que separou a minoria branca da maioria negra. O segundo: o fato de que, 25 anos depois, a liderança de Mandela deveria servir de inspiração ao redor do mundo, principalmente nesse momento em que as democracias ocidentais vivem sob ameaça.
Vale lembrar: o advogado, ativista e primeiro presidente da república sul-africana Nelson Mandela ficou preso durante 27 anos. Era para ter sido prisão perpétua, mas um acordo no início dos anos 1990 em busca da pacificação do país deu liberdade a ele e a outros políticos do CNA (Congresso Nacional Africano). Em 1993, Mandela recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Em 1994, aos 75 anos, foi escolhido como presidente.
O homem por trás das grades
As Cartas da prisão de Nelson Mandela, com quase 650 páginas, foram editadas por Sahm Venter e acompanham prefácio de Zamaswazi Dlamini-Mandela, uma das filhas do líder sul-africano. O livro dá acesso a parte das cartas enviadas por Mandela, desde as que foram de fato enviadas, até aquelas que os guardas não encaminharam aos destinatários, mas que, de alguma forma, se tornaram públicas. Que os deuses de todas as crenças e credos tenham abençoado o Madiba: durante anos ele fez cópias das missivas que escrevia, e graças a esse método temos acesso a uma boa parte delas.
As primeiras são de 1962, quando ele ficou preso em Pretória; as últimas, de 1990, quando cumpria prisão domiciliar. Mandela ficou detido entre agosto de 1962 e fevereiro de 1990, passando até por detenção em presídio de segurança máxima: ele e outras pessoas foram acusadas de uma série de crimes, em uma tentativa do Governo de minoria branca retirar lideranças que lutavam contra o apartheid.
As cartas no volume são de todos os tipos: relatos das más condições na cadeia, pedidos de ânimo para esposa, filhos e camaradas, solicitação de livros. Escritas a mão por quase três décadas, poder acessá-las em uma edição primorosa nos permite conhecer o homem por trás da figura hoje mítica.
Sabemos que ele na prisão tinha problemas financeiros, que queria conseguir o diploma de bacharel em Direito, que queria estudar outras línguas enquanto permanecesse detido — e que sempre reivindicava uma África do Sul justa para todas as cores e credos. Há relatos curtos, quase como bilhetes, mas há também descrições e preocupações, até curiosidades.
Em uma carta de 1971 endereçada a uma acadêmica e amiga dele, Mandela, com pouco mais de 50 anos, escreveu o seguinte: “Às vezes acho que através de mim a Criação pretendeu dar ao mundo o exemplo de um homem medíocre no sentido verdadeiro da palavra. Nada poderia me seduzir a fazer propaganda de mim mesmo. Se eu estivesse em condições de escrever uma autobiografa, a sua publicação teria sido adiada até que nossos ossos já estivessem repousando”.
Nesse caso ele errou duplamente: a vida dele não era medíocre, e em 1994 lançou uma autobiografia que se tornou best-seller mundial, Longo caminho para a liberdade.
O homem por trás da presidência
Nelson Mandela foi o primeiro presidente da África do Sul democrática. O mandato dele foi de 1994 a 1999. Depois que deixou o cargo, quis contar sobre esse período. O relato resultou no livro A cor da liberdade — Os anos de presidência, em coautoria de Mandla Langa e posfácio de Graça Machel, viúva do líder. O político fez rascunhos, inícios de capítulo, mas não pôde concluir: em parte porque não havia tempo, em parte porque morreu ao longo do projeto. Mandla Langa fez o serviço final.
Nessa obra, temos acesso aos bastidores políticos. Por meio dos relatos registrados, vemos as dificuldades que Mandela teve como presidente. Algumas delas: após conseguir sair da prisão em 1990, o país ainda estava dividido — brancos e negros não se misturavam. Havia atentados, violência e muita pobreza. O líder, para conseguir resolver esses problemas, rodou o país juntamente com CNA, o Congresso Nacional Africano, para descobrir o que os negros, mestiços e indianos queriam.
Além disso, teve de conversar com ex-adversários políticos, inimigos de pouco tempo antes, na busca por um governo de conciliação. Esse momento, crucial, foi quase como um jogo de xadrez: uma jogada errada e tudo se perderia.
A decisão pela conciliação levou Mandela a enfrentar a resistência de todos os lados, principalmente de aliados que não queriam negociar com os brancos. Aí o lado político entrou em cena: para unificar o país, ele precisava fazer isso e mostrar como os negros, que durante anos sofreram nas mãos dos brancos, estavam dispostos a chamar a todos para governar, e não fazer vingança — algo caro a políticos extremistas.
Com muita dificuldade, ele foi eleito pelo Congresso cuja maioria foi formada pela primeira vez por negros do CNA.
Só que o modelo de presidência na África do Sul é diferente. A constituição feita para a República permitia que partidos rivais, assim que conseguissem atingir 10% das cadeiras do Congresso, ocupassem ministérios. Com isso, adversários políticos entraram para o governo. Em alguns momentos, ajudaram, em outros, atrapalharam. E muito.
São casos assim que o livro relata: é o bastidor político do primeiro homem negro, ex-preso político, que chegou a fazer parte da luta armada dos anos 1960.
Aliás, o fato de ter ficado preso durante 27 anos e de nunca ter tido cargo político antes foram complicadores. Mesmo assim, deu declarações à imprensa inspirando confiança e viajou o mundo para atrair investimentos. Indo além, deu início a modificações estruturais: abriu parte do mercado, diminuiu a burocracia no serviço público, criou políticas sociais.
Como presidente, o livro relata que ele ouvia todas as pessoas interessadas, mas não abria mão quando tinha convicção, chegando a ser grosseiro em alguns momentos — algo que foge um pouco da imagem pública.
A cor da liberdade também fala sobre as brigas com a imprensa, mas que Madiba tinha muito respeito aos jornais e aos jornalistas.
Mandela e o Brasil
Em relação ao Brasil atual, podemos perceber alguns itens: 1) Assim como PT e PSDB, que são os dois partidos que ficaram mais tempo na presidência da República, o CNA e Nelson Mandela tiveram de fazer pactos, conciliações e jogo político para a criação de um governo; 2) O mundo carece de Nelson Mandela e de outros como Madiba: com objetivo de modificar o Estado e a estrutura, não com projetos de se perpetuar no poder; 3) No Brasil de agora, poderíamos a dizer que líderes políticos de todos os cargos deveriam se aproximar mais dos diferentes em busca da governabilidade — incluindo o presidente, ministros e deputados. O ódio não inspira e não melhora a governabilidade de uma nação; 5) Nelson Mandela deixa claro a importância da imprensa, que mostrou os problemas do apartheid e do governo dele. Enquanto isso, no Brasil, quem indica problemas no Governo é chamado de inimigo ou de propagador de fake news.
Que mais gente leia esses livros — principalmente os que atuam em Brasília.
A cor da liberdade — Os anos de presidência
Nelson Mandela e Mandla Langa
Trad.: Denise Bottmann
Zahar
496 págs.