O filósofo da passagem

O que me interessa em Montaigne é justamente seu esforço para, contra toda a massa amorfa da cópia e da repetição, se afirmar na diferença
Ilustração: Aline Daka
30/03/2019

Recebo, de Alexandrino de Souza, da Universidade Federal da Paraíba, o pequeno e precioso livro de apresentação do projeto Livraria de Montaigne, exibido em João Pessoa no ano de 1999, e depois em 2007, na mesma UFP, e fruto de pesquisa na Biblioteca de Bordeaux, na França. Trata-se de um passeio pelo universo do pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592). “Num tempo de intolerância, de banalização da violência, de desrespeito ao meio-ambiente, é de todo atual o pensamento de um humanista que, observando a relatividade das coisas humanas, preconiza que a arte de viver deve se inspirar no bom senso, no espírito de tolerância, no respeito à natureza, na verdade e na justiça”, diz, em seu inspirado prefácio, Neroaldo Pontes de Azevedo, ex-reitor da universidade.

Por que reencontrar, duas décadas depois, o projeto de Souza? A razão é simples: em nossos tempos tão tortuosos, ele se oferece como estupenda porta de entrada ao pensamento de um escritor que, a cada século, se torna mais atual. Montaigne criticava a educação livresca, baseada na memória. Ao contrário, valorizava, antes de tudo, a experiência. Seu amor pelos livros era uma coisa viva. Como se sabe, no ano de 1571, aos 38 anos, Montaigne se retirou do mundo para um pequeno castelo, na Dordonha. Em sua célebre torre, ele instalou um escritório que era também uma biblioteca. Dedicou-se, então, a redigir a maior parte de seus célebres Ensaios, que tiveram sua primeira edição em 1580.

Um amigo com quem eu comento meu interesse por Montaigne, me diz, surpreso: “Mas só você mesmo! O mundo fervilhando e você voltado para o século 16”. Esse amigo, me parece, está preso a um presente contínuo; um presente perpétuo, que nunca se esgota, de onde não só o passado, mas também o futuro, estão banidos. Não será esse um dos males do século 21? Para Montaigne, ao contrário, o mundo está em interminável movimento. “A própria constância não é mais que um longo ondear.” Escreveu ele ainda: “Não pinto o ser. O que pinto é a passagem”. Para Montaigne, o Eu era a única forma que se abre para a filosofia e por isso se torna o centro de suas reflexões.

Volto ao delicado trabalho de Alexandrino de Souza. Mostra-nos ele que uma das originalidades dos ensaios é serem, ao mesmo tempo, um autorretrato de Montaigne. Ao que condenavam sua contínua autoexposição, lembra Souza, “ele dizia que não havia tarefa mais difícil e penosa do que conhecer a si próprio”. Nada parecido com o Eu cheio de si, que brilha hoje nas redes sociais, na mídia e nas selfies. Ao contrário: o Eu, para Montaigne, não é um retrato luminoso, mas uma busca feroz. Não a repetição, mas a diferença. “O indivíduo surge pela afirmação de uma identidade própria, única e diversa da massa humana.” Além disso, pensava, o Eu só deve prestar contas a si mesmo. Resume Souza: “Ele foi o primeiro autor moderno a alcançar, a partir de sua individualidade e experiência, uma dimensão universal”. Justamente o universal que hoje nos escapa e que está muito além de todas as selfies, blogs confessionais e páginas de Facebook.

O que me interessa em Montaigne é justamente seu esforço para, contra toda a massa amorfa da cópia e da repetição, se afirmar na diferença. Isola-se em sua torre não para observar o mundo do alto, mas para dedicar-se a si mesmo — algo que, em nossos dias alterados e feéricos, cada vez temos menos tempo para fazer. Dedicar-se a si não é maquiar-se, adotar os produtos da moda, embelezar-se — não é portar uma máscara. Muito diferente disso, Montaigne decide se voltar para tudo o que fazia parte de si, tanto o melhor, como o pior.

Daí seu interesse pelo ensaio, palavra que, recorda Souza, vem do latim, de “exagium” e que significa “pesar, pôr na balança”. Resume: “Desde então, escrever um ensaio quer dizer fazer uma reflexão pessoal, de caráter experimental, sobre determinado assunto”. Todos os temas o interessavam, contanto que fossem abordados de uma perspectiva pessoal. O ensaio, lembra o autor, não segue um modelo predeterminado, nem obedece a um método. É, em outras palavras, um exercício pleno de liberdade, no qual os pensamentos flutuam, se dispersam e se agrupam, segundo um modo de ver particular. Com eles, Montaigne pretendia “se pintar por dentro e por fora”. Também das inúmeras partes e aspectos de uma mesma coisa, ele tomava apenas um deles, “ora para prová-lo, ora para sondá-lo”, já que seu interesse, antes de tudo, era pelo Um. Quando vivemos dissolvidos numa grande balbúrdia e gritaria, numa zona de indefinição e de dispersão alucinadas, só o Um pode nos fixar.

Como via o homem detido nas ideias que foi capaz de formular ao longo dos séculos, Montaigne mandou gravar frases de grandes pensadores nas vigas que sustentavam sua biblioteca. No fecho de seu livro, Souza nos brinda com uma seleção dessas frases. Elas nos ajudam não apenas a conhecer melhor o próprio Montaigne, mas a conhecer melhor a nós mesmos. Do Eclesiastes, um dos livros poéticos do Antigo Testamento, Montaigne registrou: “Deus deu ao homem a vontade de saber para atormentá-lo”. De fato, o desejo extremo e o gozo com o conhecimento já foi, muitas vezes, a nossa desgraça. Isso se o saber não estiver ligado à existência; se for algo abstrato, e não real. Do filósofo grego Sexto Empírico, ele transcreveu: “Não é desse modo, nem daquele, nem de nenhum dos dois”. Leva-nos assim a pensar no paradoxo e em sua ação sobre nossas vidas, em que tudo é e não é ao mesmo tempo, nunca em separado.

Registrou, ainda, a célebre sentença de Terêncio, o poeta romano: “Sou um homem e considero que nada de humano me é estranho”. Em uma época de especialização e de segmentação, a frase de Terêncio nos leva de volta a uma vida mais completa, sem exclusões e também sem ilusões. Visão que nos ajuda muito em nossos dias fragmentados, em que vivemos de cortes e de frações, de ações rápidas e de interrupções bruscas, quase nunca de uma experiência inteira. Sempre suspeitando do saber humano, ele transcreveu, enfim, outra frase de Sexto Empírico: “Permaneço em dúvida”. Diante da febre das certezas e das pregações que atulham nossos dias, e que só levam ao fanatismo, só a dúvida pode nos guiar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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