Se o noticiário sobre a inclusão de Sobrevivendo no inferno na lista de obras obrigatórias para o vestibular 2020 da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) causou estranhamento em alguns meios intelectuais, significativamente menor foi a surpresa para quem, estando inserido no ambiente acadêmico, vinha acompanhando a trajetória percorrida pelo álbum lançado em 1997 pelos Racionais MC’s.
Nos anos 2000, em particular nesta segunda década, a obra do grupo de rap vem sendo objeto de frequentes estudos. Como marco inicial, pode-se referir a publicação do artigo de Maria Rita Kehl Radicais, Raciais, Racionais, já em 1999; desde então, vieram a lume não apenas um sem número de artigos — entre eles, os incontornáveis estudos de Walter Garcia —, mas também alentados produtos acadêmicos, derivados de investigações de fôlego. Apenas à guisa de exemplo, citem-se as teses elaboradas por Rogério de Souza Silva, defendida em 2012 na Unicamp — um estudo sobre a “trajetória social e intelectual de Mano Brown”, como anuncia seu subtítulo — e a tese de Acauam Silvério de Oliveira, O fim da canção? Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro, defendida em 2015 na Universidade de São Paulo.
Nesse cenário, a publicação em livro de Sobrevivendo no inferno ocorre como consequência natural, mas também como evento investido de relevante valor simbólico — quando se considera que o livro tem a chancela de uma das mais importantes casas editoriais brasileiras. Não menos significativo é o formato material do volume: a capa do livro, assinada por Marcos Marques, reproduz a capa do álbum, utilizando uma ilustração de Nilson Cardoso; o projeto gráfico de Bruno Romão valoriza as célebres fotografias de Klaus Mitteldorf, fotógrafo oficial dos Racionais MC’s; longe de representar um capricho, o corte dourado se ajusta perfeitamente à estética da obra. O volume traz um ótimo texto introdutório que aborda o contexto de emergência de Sobrevivendo no inferno e sua relevância, assinado pelo já mencionado Acauam Silvério de Oliveira, além das letras do álbum e a ficha técnica do disco; lamente-se, a esse respeito, a escassa inclusão de material adicional.
Na referida lista de leituras obrigatórias para o vestibular da Unicamp, Sobrevivendo no inferno está na categoria “Poesia”, ao lado de um conjunto de sonetos de Camões e do livro A teus pés, de Ana Cristina Cesar. Não obstante, é interessante perceber que parte considerável dos trabalhos acadêmicos publicados sobre a obra provém da História e das Ciências Sociais — entre as exceções encontramos as dissertações de mestrado de Charleston Ricardo Simões Lopes, de título Racionais MC’s: do denuncismo deslocado à virada crítica (1990-2006), e O bandido do céu: uma leitura da performance de Racionais MC’s, de Ellen Berezoschi, além da dissertação de Acauam de Oliveira. Isso permite notar que, se a relevância da obra produzida pelo grupo de rap vem sendo cada vez mais reconhecida, são ainda poucos os estudos que se debruçam sobre suas qualidades propriamente literárias, retóricas e poéticas.
Pode-se esboçar, à guisa de ilustração, uma brevíssima análise de Gênesis, obra que encerra uma função preambular (conquanto antecedida pela versão para Jorge da Capadócia, de Jorge Ben). Já uma primeira leitura atenta à estrutura formal do texto evidencia sua polimetria, havendo desde versos extremamente longos — como aqueles dois que abrem a composição — até um verso monossilábico, estrategicamente situado em posição medial. A primeira parte é, assim, composta por três versos: “Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor./ O homem me deu a favela, o crack, a trairagem/ As arma, as bebida, as puta”. Assim, o conjunto de versos inicial estabelece um contraste entre o mundo originário, criado e ordenado a partir de preceitos divinos — elemento relevante, que já abre o discurso evidenciando o sistema axiológico-teológico de fundo cristão predominante em Sobrevivendo no inferno (algo explicitado desde a capa até a contracapa) — e a realidade corrompida pela intervenção humana; não por razões contingentes, a descrição do mundo deturpado se desdobra por dois versos, o que acaba por enfatizar a potência da ação destrutiva humana — sobretudo pelo efeito retórico da enumeratio, que acumula elementos associados à pobreza e ao vício (desde uma perspectiva moralizante), sobrelevando a precarização da existência. Considerando-se o título, Gênesis, é inevitável não pensar no lugar fundamental que a narrativa da Queda ocupa no ideário judaico-cristão, em decorrência de um fatal equívoco cometido pelo próprio homem.
É neste mundo corrompido que se situa a subjetividade poética, que emerge explicitamente no meio da composição — precisamente naquele verso monossilábico, reduzido a uma indagação: “Eu?”. O verso insere uma ruptura no texto, deslocando o centro da atenção para o próprio sujeito: qual é, afinal, sua posição em meio a essa sórdida realidade? A resposta, que se estenderá por toda a segunda parte da composição — prolongando-se, por conseguinte, ao longo dos três versos finais — tem uma importância crucial, por surgir associada aos atributos essenciais da figura que protagoniza Sobrevivendo no inferno.
Num primeiro momento, o sujeito relata os elementos que o identificam: “Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática/ Um sentimento de revolta”. O primeiro desses versos — portanto, o quinto verso da composição — retoma a loquacidade patente na abertura do texto; todavia, o verso que a ele se segue é consideravelmente mais curto, tendo quase a metade das sílabas. Pode-se nisso entrever um duplo propósito: em termos rítmicos, o discurso lírico se encaminha para a conclusão; em termos retóricos, assim se amplia a contundência do penúltimo verso. O par de instrumentos caracteriza o sujeito como “pastor/marginal” — figura que indicia uma ruptura estética, como acuradamente ressalta o texto prefacial de Acauam de Oliveira, já que vem substituir a perspectivação presente em obras anteriores dos Racionais MC’s, constituída a partir de uma posição distanciada, que se anunciava como portadora da verdade. Carregando a Bíblia e a pistola, o pastor/marginal surge como entidade ao mesmo tempo acolhedora e protetora, preservando laços empáticos com aqueles que o cercam, com os quais jamais deixa de identificar-se. Num segundo momento, o sujeito alardeia a revolta que o impulsiona a não apenas denunciar as injustiças de que se vê alvo, mas também a lutar concretamente contra elas, erguendo-se contra o “sistema”.
A dimensão alegórica do pastor/marginal sobressai no verso final, que resgata o título do álbum: “E tô tentando sobreviver no inferno”. Ao apresentar-se como alguém que “tenta” sobreviver, o sujeito poético não dissimula a precariedade de sua própria condição; também ele é, afinal, um sobrevivente — alguém cuja existência está sempre por um fio, e que, em decorrência disso, não tem o privilégio de situar-se acima do rebanho que lhe cabe proteger. O inferno não está num além-mundo: confunde-se com a realidade presente — é nela que estão todas as tentações, todos os demônios e todos os castigos. Por conseguinte, o pastor/marginal está destinado a trilhar a mesma senda percorrida por seus irmãos (não por acaso, a contracapa original do álbum trazia os versículos que falam sobre o “vale da sombra e da morte”). Para além disso, o pastor/marginal atualiza a trajetória de seu modelo maior, que lhe serve como um exemplo vivo: “Eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo/ Que andava entre mendigos e leprosos pregando a igualdade/ Um homem chamado Jesus”, afirma em seu trecho final a composição que encerra Sobrevivendo no inferno, Salve.
Concluo este texto resgatando o episódio relatado por Sérgio Vaz — quando este afirma que, estando na Fundação Casa, perguntou quem gostava de poesia, recebendo inicialmente uma resposta negativa; todavia, após recitar Negro Drama, foi questionado por um jovem: “Ei, senhor, Racionais é poesia? Então nóis gosta”. Que a poesia dos Racionais MC’s — e de outros grupos de rap —, agora academicamente chancelada, possa finalmente receber a atenção que merece.