Pequena fenda no rosto.
Ferimento & sangue? Dor? Uma frase. Em princípio uma descrição, no entanto
Pequena fenda
no rosto
abre-se. Outras fendas, outros rostos, a coisa tem outra cara. As mesmas palavras, outra forma, nenhuma pontuação como guia e a fenda fica ali, pendurada, numa beira… o rosto também. A poesia nesse poema abre um talho de possibilidades. Vertigem, aventura. Pode ser um sorriso (pra quem tem motivo). Pode ser um rasgo feito por bala de borracha (ferimento & sangue & sua história). Pode ser ruga, idade profunda. Ou a fenda, certa expressão de um rosto como precipício que me engole.
A poesia, que segundo Antonio Candido e Octavio Paz, entre (poucos) outros, pode estar em qualquer plataforma, até mesmo no poema (sendo que no poema pode não haver poesia), a poesia não está na primeira linha desse texto assim como no poema a seguir, feito com as mesmas palavras, apenas dispostas diferentemente? Acredito que não, mas duvido de mim. O corte do único verso, o título usado também como verso, criam mais agressivamente as possibilidades. Resumindo, o texto sai de um padrão normal de narrativa e de sua crença e desejo de contar algo passa à de mostrar, a exalar uma experiência, revelar como se pudéssemos observar e tocar a tal fenda por fora e por dentro.
Uma diferença fundamental e incontornável, em primeiro lugar, é que o poema foi publicado da segunda forma, primeiro no livro O corpo fora, de 1988, agora na antologia Francisco Alvim 80 anos, da qual parte esta resenha. Ou seja, foi a escolha do autor. Em entrevista publicada no Rascunho #151 (novembro de 2012), Alvim revelou do processo de criação: “É um relato indireto e simbólico. E também absorve não apenas as minhas vivências, não apenas as minhas experiências, mas as experiências que eu sinto ao redor de mim […] Você vai trabalhando aqueles poemas e, de repente, no fim de certo tempo — porque escrevendo pouco e com uma poesia que tende pra condensação, ela precisa de tempo — ela se escreve”.
Sublinho duas coisas: “uma poesia que tende pra condensação, ela precisa de tempo” e “ela se escreve”. Voltarei a isso daqui a pouco.
Amplitude
Deixo-me infiltrar várias vezes pela mesma Pequena fenda, página 16 dessa edição da Quelônio. Agora mesmo assisti a dois homens com ferramentas nas mãos, enxadas, picando a cobertura de uma quadra de tênis debaixo do velho conhecido sol do verão carioca. Um velho conhecido cada vez mais quente, mais feroz na pele da gente. De que fendas brotam o suor desse trabalho nos rostos deles, rostos inclinados, enterrados a um metro e sessenta, setenta, oitenta do chão? E que novas fendas o suor cava, como erosão? Minha indignação por esse trabalho, em nada urgente, nessa época do ano no Rio de Janeiro, não tampa as fendas deles nem as minhas. Por que fazer esse trabalho agora? O chicote abria fendas nas pessoas tratadas como se não fossem. Elas seguem abertas? Lembro da fenda no rosto de Michael K., personagem de J. M. Coetzee. Leio esse poema muito possivelmente criado a partir de alguma ideia nada a ver com essas, mas ele ainda assim tem o poder de me aprofundar em minhas próprias possibilidades. O leitor de um poema também o escreve, não é? Pequena fenda é um dos 55 poemas dessa antologia. Um dos que produzem no mínimo essa amplitude de significação possível. Leio os poemas que Francisco Alvim lançou e me pergunto: como consegue tanto se parece tão simples?
Tradutor de um sentimento do mundo em redor, não somente o dele, o poeta admite a participação de outros, humanos e não humanos, no processo humaníssimo da poesia, ao dizer por exemplo que “ela [poesia] se escreve”. É preciso ouvir os poetas, considerar testemunhos assim, do poema que afeta, que transforma; mediador, agente, não somente produto.
Em artigo que trata de Alvim e de Ferreira Gullar (A poesia e a política são demais para um só homem, Revista Maracanan, 2014), Viviana Bosi destaca o “observador atento, que entreouve trechos de conversa nas quais se reconhece, familiarmente, a fala brasileira. A ironia silenciosa percorre esses estranhos, porém reconhecíveis diálogos murmurados nas ruas, nas casas, nas repartições, nas câmaras semiocultas do poder”.
Página 6 do livro Francisco Alvim 80 anos, a estrofe confirma essa população que habita o poeta:
Estou em mim
Estou no outro
Estou na coisa que me vê
e me situa
Também o poeta e pesquisador Heitor Ferraz Melo, em sua dissertação O rito das calçadas: Aspectos da poesia de Francisco Alvim, de 2001, com orientação de José Antonio Pasta Jr. (USP), amplia e especifica essa característica do poeta pesquisado (grifos meus): “Alvim devolve ao leitor o que ele recolheu na sociedade onde este leitor vive e foi criado. A intenção parece ser didática: o poeta ensina a ouvir, por meio de sua poesia da fala. O leitor aprende, no contato com essa poesia, a perceber as modulações da língua e o teor de veneno que se esconde na simplicidade e na naturalidade com que as coisas são ditas”. Ou seja, o poeta não cria sozinho, muito menos Francisco Alvim, que, adaptando o dizer d’outro Chico, cata a poesia que entornam no chão. Só que não criar sozinho não significa que qualquer um poderia fazer o mesmo, é o contrário: somente ele, nas circunstâncias de sua vida, em cada momento, poderia ter feito o que fez (e, como diria Deleuze, poderia não ter feito).
“[…] ligar a vida à experiência individual, por mais pobre, por mais deformada, por mais danificada (para usar uma expressão adorniana) que seja, realmente é a sua experiência e a sua individualidade — ao contrário do que diziam os militares, ‘de insubstituíveis os cemitérios estão cheios’. Ao contrário, eu acho que qualquer vida humana é absolutamente insubstituível, e tem um significado transcendente que a gente não percebe e tem que ser guardado”, declarou Alvim em outro trecho da entrevista publicada no Rascunho 151.
Mas até agora praticamente puxei o assunto a partir de um único poema da antologia organizada pelo mesmo Heitor Ferraz, especialista em Alvim, dessa vez para o evento Vozes, Versos realizado todo mês por ele e Tarso de Melo na livraria Tapera Taperá, no Centro de São Paulo.
O livro
Francisco Alvim 80 anos, Quelônio, 32 páginas, 2018, papel jornal, capa em Recycled Honey, como me conta o delicado e muito completo colofão. A obra se autodenomina plaquete, termo que sugere uma publicação independente, sem ISBN, mais curta que um livro, que, como objeto, costuma ter mais de 50 páginas. Mas me pergunto de novo: que é um livro? A edição deste é de Bruno Zeni, que, além de um dos criadores da Quelônio ao lado da responsável pelo projeto gráfico Sílvia Nastari, é escritor e professor de escrita literária, entre outras propriedades. Textos compostos em linotipo. A costura em delicada e firme linha azul possibilita boa abertura das páginas, sem medo de ferir a edição. Muito simples, prático, bonito, como um poema do editado, a forma necessária para dar potência ao conteúdo.
A seleção de Heitor Ferraz obedece à ordem cronológica de publicação, desde o primeiro livro de Chico Alvim, Sol dos cegos, em 1968. A preferência parece ter sido pelos poemas curtos, uma das marcas do poeta, apesar de haver em sua obra poemas mais longos também: os maiores entre esses 55 escolhidos são Elefante e Sossego. Queria ter estado no dia 20 de outubro de 2018 no Tapera Taperá, onde em outra oportunidade escutei Marília Garcia lendo alguns de seus poemas e conversando sobre eles. Nesse dia Chico Alvim leria os dele, 80 anos nas costas, nos ossos, no sangue, nos olhos, na voz, quando, de fora, a gente pode achar que o poeta já alcançou ter dito tudo (será?).
Seguindo a linha de pensamento de uma obra que não se faz sozinha, Francisco Alvim 80 anos poderia não ter passado de um folheto comemorativo, um guia de acompanhamento do evento na livraria, como panfleto de greve ou jornal de missa. Mas juntaram-se esses 80 anos de vida do poeta, seus 50 anos de publicação de poemas, a dedicação de Heitor Ferraz como pesquisador, sua sensibilidade de poeta vivido, e na mesma medida as leituras de Bruno e Sílvia na editora. Portanto, não é um produto, é uma construção. Um livro como coisa que é poesia também.