Um grande romance do contemporâneo

O filho eterno consagrava assim, tardiamente, toda uma trajetória, criando um novo desafio para o autor então com 55 anos: refundar a sua ficção
Ilustração: Cristovão Tezza por Fábio Abreu
01/08/2018

Com a publicação de O filho eterno (2007), romance de autoficção sobre o conflito interior de um pai em relação a um filho portador de Síndrome de Down, Cristovão Tezza se tornou um dos expoentes da ficção brasileira. Chegava ao estrelato literário com uma obra já consolidada, nascida sob a influência da contracultura, mas com um amadurecimento estético consistente. Da contracultura, o autor guardou a aversão ao sistema, seja ele qual for, o que lhe garante uma postura crítica saudável em um meio pouco profissionalizado em que os intelectuais são cooptados por benesses. O filho eterno consagrava assim, tardiamente, toda uma trajetória, criando um novo desafio para o autor então com 55 anos: refundar a sua ficção.

Evitando o estilo confessional desta obra pautada pela própria experiência — apesar do disfarce de um narrador em terceira pessoa —, Tezza buscou uma latitude estética mais complexa, criando romances declaradamente reflexivos: Um erro emocional (2010), O professor (2014) e A tradutora (2016). Nestas narrativas, e principalmente em um ensaio sobre a sua própria ficção — O espírito da prosa (2012) —, ele reelaborou um modelo que poderíamos definir como parentético. Vão sendo abertos sucessivos parênteses (imaginários ou não), de tal forma que o texto cria uma simultaneidade de tempos, histórias e vozes. A evolução narrativa se dá no constante recuo e retomada de tensões inconfessadas publicamente por seres com a vida privada em estado de desorganização. Neste processo, o presente da história se mescla com cenas carregadas de dramas morais. O tempo breve do agora, fixado realistamente, é implodido pelo tempo interior do personagem. Há um tempo por fora e um tempo por dentro dele, que o coloca em descompasso com as pessoas, determinando o movimento lento da narração.

Os personagens de Tezza estão sempre neste espaço dual da ação que se vive contemporaneamente e da ação que se revive como obsessão memorialística. É deste jogo (antes/agora, convívio/isolamento, lembrança/ação) que surge um estilo com cenas e falas sobrepostas, em um relato que avança permanentemente entrecortado.

O ápice desta fase da obra de Cristovão Tezza está em seu mais recente romance — A tirania do amor. O fluxo-refluxo dos fatos encontram marcações em frases em itálico, em uma sucessão constante de fragmentos da experiência de um economista que vive do mercado financeiro, embora seja um mestre irrealizado da matemática.

O modelo dual de tempos narrativos tem uma equivalência na identidade de Otávio Espinhosa, que se experimenta em papéis dúbios. Do jovem gênio ao filho que recusa o pai desonesto, do pai esquivo ao amante de uma herdeira rica, do aluno de Harvard ao profissional medíocre, ele é sempre dois e ao mesmo tempo ninguém. Nada exprime melhor esta natureza cindida do que a dualidade de Espinosa como Kelvin Oliva. Aquele é o homem com uma profissão apagada e com ramificações ilícitas, sofrendo com a mediocridade. Este, o autor, sob pseudônimo, de um livro de autoajuda — apresentado falsamente como filósofo.

A escrita de um livro por parte do personagem em conflito, justificativa para a existência, é tema recorrente na obra de Tezza, para marcar a vitória da vida autêntica sobre os engodos sociais que nos envolvem com suas promessas de alegria. Mas aqui o livro é mais um engodo, pois está dentro do mecanismo mercantil da produção editorial. A obra que o salvaria é Os funcionários da Coroa, uma explicação do país por sua lógica estatizante, um trabalho acadêmico abandonado, e que sinaliza a interrupção de um talento. Na crise da meia idade, o personagem se vê supérfluo em uma estrutura cheia de falsificações. Ele avalia seu passado e o saldo de honestidade de sua vida, sem saber que rumo tomar.

Tudo no romance acontece em um dia de tensão máxima. Tanto a vida pessoal quanto a vida profissional de Espinhosa começa a ruir. Ele sai de casa cedo, a pé (no centro financeiro de São Paulo) para a sua odisseia matemática. Conta cada passo do trajeto, para criar um sistema confiável (tantos passos até tal ponto da viagem cotidiana) e tira instantaneamente a raiz quadrada dos números que vê, como uma forma de autocontrole.

Em meio a um bombardeio de problemas, persegue quixotescamente um ponto de equilíbrio interior. Neste dia, ele se confronta com muitas tormentas: a falência do casamento, a iminência de se relacionar seriamente com outra mulher, a perda do emprego, um projeto de guinada profissional (que não passa de uma nova farsa), o desafeto do filho ativista mantido pelos pais burgueses, a suspeita de estar envolvido na corrupção investigada pela Operação Lava Jato da Polícia Federal, etc. Espinhosa tenta desativar estas situações adversas usando a lógica, o que lhe traz alguma tranquilidade.

O jogo permanente do romance se localiza entre o movimento e a paralisação. Espinhosa é obrigado a modificar a vida, mas não sabe para onde ir. Só há um momento de integração verdadeira na história — um almoço com a filha adolescente. Ela quer seguir uma profissão em que se sinta realizada. E conversa com pai sobre isso e sobre o fim do casamento dele, escolhendo um caminho que Espinhosa não tomou, o da autenticidade. Mesmo assim, o romance acabará sob uma legenda desafiadora — “a burguesia fede” —, que ele encontra escrito no muro. E isso funciona como uma acusação a ele, que apenas trilhou a trajetória burguesa padrão.

Ao mesmo tempo em que foca as relações afetivas em ruína, o romance também faz uma incursão pela política contemporânea brasileira, em uma crítica à tendência para a vida dependente do estado, tanto dos indivíduos quanto das corporações. A tirania do amor é um dos nossos raros romances que tratam do agora, tendo como pano de fundo a crise moral do Brasil, e Tezza empreende isso sem concessões a campos ideológicos, a discursos politicamente corretos e a conveniências intelectuais. Ele usa o seu personagem para estudar a sociedade brasileira, vista como pátria das vocações desperdiçadas. Esta luta entre o que se é e o que se torna percorre todo o romance, sem deixar de retratar de forma cosmopolita o homem afeito a autoenganos.

Se há uma organicidade deste título com a obra anterior de Tezza, manifesta-se uma mudança de cenário bastante significativa. Seus livros sempre estiveram vinculados a uma geografia pessoal (o Paraná, onde o autor vive, e Santa Catarina, onde ele nasceu e morou por um tempo). Tal mudança cria uma ampliação do espetro ficcional, refletindo a crescente internacionalização de uma obra que pensa o contemporâneo a partir do Brasil.

Nenhum outro ficcionista brasileiro atingiu este grau de liberdade mental para construir um discurso literário sobre o país, independentemente das narrativas ideológicas ativadas em uma cultura que se expressa por chavões. A tirania do amor é um romance que apresenta o impasse de uma nação com um modelo comportamental imóvel desde a época do Império.

A tirania do amor
Cristovão Tezza
Todavia
176 págs.
Literatura à margem
Cristovão Tezza
Dublinense
160 págs.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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