A nova questão coimbrã

Uma incursão pela Lucky Lux, uma loja de discos imperdível em Coimbra
Ilustração: Fábio Abreu
31/05/2018

Há um programa ótimo no Canal Bis — não sei a hora, nem o dia: acontece sempre de pegá-lo a meio, por acaso, mas quando ocorre, nunca o abandono antes do fim, sentindo pena de que não durasse mais tempo. Chama-se Minha loja de discos ou algo assim. O programa enfoca lojas incríveis ao redor do mundo, em que o básico é a paixão pela música, especialmente na forma peculiar e old fashioned nascida do casamento estranhamente sensual entre duas coisas antigas: o vinil e o rock. Observa-se também, nos proprietários de todas essas lojas, por mais diferentes que sejam, a ambição de levar uma vida alternativa, em que se vive com dinheiro modesto, mas ganho milagrosamente em meio a coisas que amam, como ouvir música e conversar sobre a música que se ouve e depois ouvir mais música para conversar etc. Uma terceira característica, não menos importante, dessas lojinhas descoladas ao redor do mundo, é que quase todas conseguem manter uma cena musical própria em torno delas. O que mais se aproxima disso no Brasil talvez seja a Baratos Afins, na Galeria do Rock, em São Paulo, da qual todo mundo que se interessa por vinil já ouviu falar, frequenta ou pensa algum dia em dar um pulo até lá.

Mas, enfim, por mais improvável que pareça, fui lembrar-me desse programa bem aqui, em Coimbra, onde atualmente estou dando um curso de Pós-Graduação na Universidade. En passant e a título de informação, acrescento que o número de estudantes brasileiros na Universidade de Coimbra tem aumentado muito a cada ano, embora pagando uma anuidade absurdamente cara comparada à taxa cobrada de alunos europeus. Alguma negociação da diplomacia brasileira deveria já ter havido a esse respeito, ainda mais considerando o estatuto único das relações Brasil-Portugal. Mas onde está a diplomacia brasileira, ou, mais amplamente, o interesse do governo brasileiro em favorecer a educação desses jovens brasileiros no exterior, ninguém viu, ninguém sabe. E antes que alguém logo grite o merecido “fora, temer” e se esqueça do assunto de fundo, advirto que não é coisa nova essa omissão, mas antiga e persistente. Lembro-me até de que, no illo tempore do meu doutorado, para conseguir entrar nos arquivos do Vaticano tive de contar com uma carta da Academia Francesa em Roma, concedida gentilmente pelo seu diretor de então, Michel Coudry, pois na Embaixada do Brasil ou nas agências de financiamento brasileiras não se previa absolutamente nada a propósito desses difíceis protocolos de acesso a bibliotecas particulares de pesquisa.

Enfim, deixemos os problemas irritantes de sempre e tornemos à diversão. Nos intervalos das aulas, em meus passeios pela cidade e arredores, o Osvaldo Silvestre, grande amigo e diretor do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Coimbra, levou-me a uma loja que atende plenamente aos três requisitos que mencionei acima. Não sei se ela já foi contemplada em algum episódio do programa brasileiro, penso que não. De Portugal, acho que já apareceu a Louie Louie, de Lisboa. Eu conheci a loja-irmã do Porto, realmente boa, gerida por um camarada muito simpático e expert em todo tipo de disco, o Rui Quintela, onde comprei coletâneas improváveis de blaxploitation, de música psicodélica latina, de experimentalismos eletrônicos vintage, e de lps já clássicos de doom, como Obsessed e St. Vitus, e de stoner, como Earthless e Naam.

Mas, tornando à nossa questão musical coimbrã, a lojinha de que lhes quero dar notícia é a Lucky Lux, situada na Rua sargento-Mor, 11, telefone: (00.351) 239.067.788. O nome é uma óbvia e justíssima homenagem ao gênio do psychobilly, Lux Interior, que faleceu em 2009, devido a problemas do coração, o que arrasou a todos, mas não admirou a ninguém que já teve a sorte de assistir a alguma de suas performances absolutamente frenéticas à frente do The Cramps. Só Iggy Pop, porque é sabidamente imortal, sobrevive ainda a algo da mesma frequência.

O proprietário da Lucky Lux, também Rui, gentil e entendedor como o da Louie Louie, fundou-a em 1996. Desde essa época, reúne em torno de si e de sua loja, que é também gravadora, uma grande quantidade de bandas excelentes, as quais, contra toda a imagem provinciana de Coimbra, tem no rockabilly, na surf music, na psicodelia dos anos 60, no punk, e especialmente no psychobilly, a sua fonte de inspiração. Você imaginaria algo assim numa cidade menor do que qualquer bairro de São Paulo? Pois é, felizmente a vida das coisas não se resume ao lugar mais previsível para elas e a Coimbra da Lux Records tem gravado ao longo de sua trajetória bandas trepidantes como Belle Chase Hotel, Tédio Boys, Legendary Tigerman, Sean Riley & The Slowriders, D3O (pronuncia-se The Trio), Wraygunn, Bunnyranch, Tiguana Bibles, Ruby Ann & The Boppin’ Boozers, É Mas Foi-se, Ghost Hunt, António Olaio & João Taborda, Azembla’s Quartet, Victor Torpedo, Tracy Vandal, Bodhi, The Walks, Millions, Raquel Ralha & Pedro Renato.

Com os Tédio Boys tenho já alguma história. Em New Haven, Connecticut, ainda nos anos 90, comprei numa loja de um selo local um cd da banda, de que até então nunca tinha ouvido falar. Comprei levado pelo nome irônico em português e pela capa maluca, em que havia uma montagem em tom roxo-amarelado de figuras de filme de horror B sobrevoadas por discos voadores mambembes. Cantavam em inglês, e as faixas tinham muito instrumental psychobilly, de modo que só soube que eram portugueses muito depois. Também conheci, dentro da própria Lux, o gentil Pedro Chau, que chegou a tocar baixo com os Tédio Boys e atualmente cozinha com os punks do Parkinsons e ainda com uma banda ambient/ krautrock excelente chamada Ghost Hunt.

Ainda no âmbito dos Tédio Boys, vi agora em Coimbra, num teatro municipal pequeno e acolhedor, a apresentação solo do seu guitarrista, Victor Torpedo, acompanhado apenas de uma dançarina sexy chamada Vera, da qual vocês podem ter uma vaga ideia imaginando a Cleopatra da Liz Taylor movendo o ventre e os quadris ao ponto de fervura do Império Romano. Enquanto Torpedo improvisava solos de surf como quem se via num baile da lua cercado por alienígenas lúbricos, Vera serpenteava coreografias livremente inspiradas em filmes mudos e seriados dos anos 50 projetados num telão. O ápice disso tudo veio com a projeção de trechos de O tigre de Eschnapur, de Fritz Lang, em que o futuro é sempre um passado primitivo, obscuro e sensual.

Desta vez, ainda, além do Pedro Chau, conheci pessoalmente na Lux, o finíssimo músico, tecladista e compositor Pedro Renato, do Belle Chase Hotel e do The Mancinis, que atualmente compõe um duo extraordinaire com a vocalista Raquel Ralha. Fiquei impressionado com o conhecimento profundo que ele tem de bossa nova, tropicália e música brasileira em geral, mas, ainda mais, por encontrar nessa altura da vida mais um cúmplice no cultivo de sons space age, exotica, easy listening, spaghetti western e outras bizarrias educadamente perversas.

Nos dois últimos anos, com o renascimento do vinil, a loja tem vivido grandes momentos, entre os quais, destaco a realização do Festival Lux Interior, para celebrar bandas que tocam no espírito de seu herói. Rui me disse pessoalmente que desta vez vai tentar by any means que venha tocar a Poison Ivy em pessoa —, a viúva de Lux Interior, que continua ruiva, linda, malvada e, afinal, tem obrigação de vir visitar o templo dedicado ao marido na longínqua, bucólica e secreta Coimbra.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho