Quando o leitor brasileiro topa com um romance contemporâneo cujo título é um solitário nome de mulher sem nenhuma conotação especial (Sandra, digamos), a desconfiança é imediata. Se o nome for um modismo de inspiração estrangeira (Suellen, digamos), aumenta a suspeita em direção ao que se convencionou chamar de literatura menor ou subliteratura, dois termos pouco lisonjeiros usados para distinguir o que é artesanato do que se considera arte de fato. Junta-se a isso uma autoria feminina e pronto, o presságio se confirma antes de aberto o livro. Literatura de mulherzinha, cospe irônico um machismo que às vezes também resolve dar as caras num território que deveria, por definição, ser isento de qualquer preconceito. É disso que afinal se fala aqui, de preconceito, assunto recorrente em todas as pautas de discussão hoje em dia e algo de que a sociedade aparentemente quer se livrar. Algo que também pode interferir no mercado literário e ameaçar um lançamento sério, caso o editor daqui não esteja devidamente acordado para essas peculiaridades culturais na hora de publicar a obra estrangeira, ainda que ela tenha sido produzida no mesmo idioma que o nosso.
Se uma das maneiras de combater esse tipo de preconceito é ignorá-lo solenemente, talvez estejamos diante de um caso de ousadia editorial, pois parece que a intenção aqui tenha sido a de provocá-lo ainda mais. O leitor que tiver em mãos o romance Karen, da portuguesa Ana Teresa Pereira, terá de abstrair não só do título mas também da capa, que na edição brasileira vem numa concepção retrô de gosto mais do que duvidoso ao padrão nacional — e mais um fator com peso negativo na arrancada —, para se fixar no que realmente interessa: Karen foi a obra vencedora do Prêmio Oceanos 2017 na primeira vez em que a premiação principal coube a uma mulher, e Ana Teresa Pereira, autora até então inédita no Brasil, tem uma sólida e reconhecida carreira no além-mar, onde já lançou mais de duas dezenas de títulos desde a estreia na literatura em 1989.
Consistência
Vencido o percalço inicial e aberto o livro, o leitor vai se deparar com a objetividade de quem sabe o que quer e para onde vai desde a primeira linha. Nada de experimentalismos nem de prefácios ou de outras filigranas que só retardam a entrada no principal. Depois da breve epígrafe de W. G. Sebald, o romance abre direto e firme no primeiro capítulo para seguir numa estrutura de capítulos curtos cuja simetria garante um mesmo ritmo até o final (é interessante observar que muitos autores, no afã da busca pelo original, acabam perdendo a noção de que simetria, objetividade, assepsia quanto a aspectos gráficos são detalhes que deixam a leitura mais confortável; se o objetivo for inquietar o leitor, nada rouba a primazia da força do texto sobre qualquer outro artifício). O máximo de subversão a que se permite a autora é uma abertura in finis res, com uma surpresa formal no último capítulo que não se vai aqui antecipar. Em todo o resto, a sobriedade veterana de quem sabe que é sempre melhor investir na consistência do conteúdo do que na decoração da fachada.
O livro inicia com duas descrições sucintas e belas de cenas de filme, uma de Noites brancas, o clássico de Luchino Visconti baseado em Dostoievski, outra de Narciso negro, de Powell e Pressburger (note-se que o contraponto dos títulos não é mera coincidência), e com elas o primeiro pensamento vem à cabeça: como escrevem bem esses portugueses! À elegância do texto soma-se uma trama de suspense calcada em pequenas estranhezas que vai sutilmente sendo engendrada numa Londres invernal, e o suficiente para que o leitor esteja definitivamente fisgado ao final do primeiro capítulo. No capítulo seguinte é onde a história começa de fato. A protagonista-narradora é uma jovem de 25 anos que acorda um dia numa casa em Northumberland, zona litorânea ao norte da Inglaterra. Ela não reconhece o lugar, nem seus moradores, nem a roupa que veste. Está machucada, contam-lhe que sofrera uma queda ao tentar atravessar uma cascata e em consequência do acidente ficou desacordada por alguns dias. Descobre estar casada com um escritor que não recorda ter visto mais gordo na vida. Alan é o dono da propriedade e anda mal das finanças. Na casa também mora uma governanta de nome Emily que lhe faz lembrar uma atriz em cena. Consta que o nome da protagonista seja Karen, mas ela na verdade não tem a menor ideia de quem seja essa pessoa. Guardadas no fundo de sua memória, há outras e bem diferentes lembranças: ela viveria em Londres, seria uma artista plástica cujo nome não se revela e teria uma personalidade distinta daquela que começa a conhecer através do pouco que consegue desvendar. Duas almas diferentes se digladiando num único corpo, mas Karen e sua Outra tentam se adaptar, conviver e enfim sobreviver a uma realidade totalmente desconhecida. Há medo, constrangimentos e todo o elenco psicológico indispensável a um thriller de suspense que Ana Teresa conduz com sobriedade e competência. E mais não seria possível adiantar sem roubar do leitor o privilégio de descobrir ele mesmo as várias sutilezas desse rico entrecho.
O frio, a névoa, a umidade, tão característicos de um inverno que parece não ter fim e quase sempre indissociáveis de uma clássica trama de suspense encenada na Inglaterra, em Karen ganham uma importância adicional além de óbvia ambientação: são elementos a serviço de uma organicidade onde cenário, trama e personagens se refletem e complementam mutuamente. O argumento esboçado há pouco caberia por certo em qualquer época, clima ou locação, mas no rigor de um inverno interminável, com neblina e fiordes no horizonte, o efeito é um jogo de luz e sombras, imagens difusas contrastantes à solidez das rochas, fantasmas e vida real. Numa rápida consulta à fortuna crítica da autora, contudo, ficamos sabendo que em sua ficção a Inglaterra é um cenário recorrente. A neve, os fantasmas, a dualidade, outros de seus fetiches literários. E se observarmos com atenção apenas os títulos dos livros publicados ao longo de trinta anos de carreira, o inventário dirá muito das preferências temáticas de Ana Teresa Pereira e nos levará a pensar Karen como uma síntese do que produziu até agora. Alguns desses títulos: Matar a imagem, A cidade fantasma, A coisa que eu sou, A noite mais escura da alma, Se eu morrer antes de acordar, A dança dos fantasmas, O mar de gelo, O sentido da neve, A neve, Inverness, A outra, O lago, As longas tardes de chuva em Nova Orleans. Esse conjunto pode ser visto na perspectiva de um movimento que levará ao argumento do mais recente livro.
Referências
Além do cinema, em Karen há várias referências a autores, livros e músicas. Ana Teresa vale-se desse recurso, que em outras prosas quase sempre soa pernóstico, para marcar diferenças de personalidade. A opção se vincula de forma orgânica ao conjunto sem passar qualquer ideia de pedantismo. Também é importante notar a atenção que a autora dá a aspectos sensoriais: cores, formas, cheiros ganham uma insuspeita relevância na narrativa. O cheiro da tinta fresca que impregna o ambiente de seu estúdio em Londres é uma lembrança recorrente que mantém a personagem conectada com a consciência da Outra.
Contudo, o maior requinte da prosa elegante da autora está em sua absoluta simplicidade. As frases têm uma fluidez natural, estão isentas de qualquer afetação ou contorcionismo, entram no ouvido como se fossem música. O poeta Mario Quintana dizia que o poema precisava ser reescrito várias vezes para que parecesse ter sido escrito uma única vez. Quantas vezes Ana Teresa Pereira reescreve seu texto para que ele soe tão belo e ao mesmo tempo tão natural, isso ainda é uma incógnita ao resenhista. O certo é que, por trás da aparente simplicidade, há sempre um esforço de construção que mais bem-sucedido será quanto menos ficar à mostra. Em Karen, a qualidade excepcional do texto autoriza a pensar que não é obra do acaso, mas fruto de um rigoroso processo de criação e amadurecimento.