No meu livro A preparação do escritor (Iluminuras, 2008), chamo a atenção para a necessidade de que a literatura em prosa de ficção deve ser trabalhada com sofisticação para chegar ao leitor com simplicidade. O que não é experimentalismo, em absoluto. Na sofisticação, o autor aplica aquelas técnicas criadas pelos gênios da literatura que, com o tempo, tornam-se tradicionais. A questão é aprender a usá-las com habilidade de forma a seduzir o leitor. Se a literatura acompanhar a vulgaridade do mundo contemporâneo, corre o risco de desaparecer.
Uma dessas técnicas é o discurso indireto livre, que se constitui na reunião da voz do narrador com a voz do personagem sem que, na maioria das vezes, o leitor perceba. Criado por Flaubert, sobretudo, para Madame Bovary, o discurso indireto foi, pouco a pouco, ocupando um lugar importante na ficção moderna e contemporâneo, principalmente na América Latina, em especial no realismo fantástico, que faz a prosa andar livremente.
Juan Rulfo, considerado o criador do realismo fantástico, mesmo que não tenha sido o seu propósito, faz de Pedro Páramo, por exemplo, uma espécie de painel desta técnica.
Vejamos o começo deste livro célebre:
Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo, minha mãe que me disse.
Aparentemente, um texto convencional. Mas há aí duas vozes. “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai” — voz do narrador. “(…) um tal de Pedro Páramo” — voz da mãe do narrador, cheia de raiva; “minha mãe que me disse” — voz do narrador.
Observe-se que a frase longa repete um verbo — dizer — que parece erro grave do autor. Seria mesmo? Não se trata de uma frase, mas de várias. O verbo, aí, marca a mudança de voz. Mas há um detalhe curioso.
Há duas traduções deste livro mexicano no Brasil. Uma de Eliane Zagury, publicada pela Paz e Terra, em livro de bolso; a segunda é de Eric Nepomuceno, da Record; Eliane retira o pronome oblíquo “me” da frase, o que tira dela a voz do narrador. Por quê? Porque o narrador destaca que a mãe disse a ele cheia de ódio, cheio de raiva: “um tal de Pedro Páramo”. A ausência do “me” leva o leitor a descobrir erro na frase inicial de Pedro Páramo.
Aliás, o verbo dizer transforma-se num desafio porque é repetido doze vezes na primeira página.
Passamos a analisar esta técnica em Madame Bovary, em que Flaubert realiza as primeiras experiências.
No final do livro, Charles, o viúvo de Emma, encontra-se com Rodolphe, o amante, para uma conversa íntima, por assim dizer. É neste instante que as vozes entrecruzam.
— Não lhe quero mal — disse.
Acrescentou, inclusive uma grande frase, a única que jamais dissera:
— É culpa da fatalidade!
Rodolphe, que conduzira aquela fatalidade, achou-o bastante bonachão para um homem em sua situação, cômico e até um pouco vil.
Verifique-se que a frase de “Rodolphe…” até “achou-o” pertence ao narrador. Mas a voz de “bastante…” até “vil” é de Rodolphe, que se constitui num julgamento.
Estudar a técnica não é experimentalismo, mas a afirmação de um momento genial do criador.
É preciso destacar que esta opinião não poderia ser dita em voz alta e cortá-la seria tirar do texto o que ele tem de mais forte e de mais irônico. Se o autor recorre às aspas, tiraria do leitor a vantagem de descobri-la com a reflexão silenciosa. Além disso, as aspas colocariam uma espécie de tensão na frase, tensão, aliás, que ela não pede, nem tensão nem destaque. É importante que ela seja sóbria e elegante.
Outro autor que usa, com imensa qualidade, o discurso indireto livre é o português José Saramago que, ainda assim, destaca sempre a primeira letra da frase com a maiúscula. Os exemplos de Saramago encontram-se no meu livro Os segredos da ficção, chamando atenção para o romance Memorial do convento.