A literatura não tem dono: não é necessário pertencer a um determinado universo de experiências para escrever sobre elas. Kafka nunca viveu no campo: cresceu em Praga, uma das maiores cidades da Europa e trabalhava em uma companhia de seguros, enquanto escrevia Um médico rural. Aqui no Brasil, Leonardo Brasiliense, um médico criado na cidade, trabalhando na Receita Federal, retratou com densidade e lirismo a vida de uma família de colonos do interior do Rio Grande do Sul de 40 anos atrás. Roupas sujas é um pequeno romance regional em que uma família numerosa perde, a partir da morte da mãe, quase todo seu tecido conjuntivo, restando apenas o esqueleto e algumas articulações — exatamente como pode acontecer com qualquer família em qualquer lugar no tempo ou na geografia.
A história é narrada em quatro vozes separadas em diferentes “capítulos”, mas também pelo tempo: a primeira, de Antônio, relata a infância no campo, um passado distante; a segunda é de Valentina, trata do presente e dos que a cercam na vida adulta; a terceira, de Pedro, o caçula, é voltada ao futuro: roga a Deus que os vivos continuem amando uns aos outros e não deixem a família morrer também em seus corações.
A quarta voz é a de um narrador onisciente que surge em notas de rodapé, com informações que dão uma dimensão maior ao ambiente e aos personagens. Com voz de adulto conta o que poderia ser o pensamento de Antônio, incluído após a leitura de seu próprio relato de menino. Em algumas ocasiões expressa o que seriam sentimentos de outros personagens, mas que um adulto, ao relembrar a infância, poderia inferir. O fato é que as notas de rodapé só se fazem presentes no relato do menino, e ressurgem brevemente no final, a relatar uma cena do presente de Antônio. Proposital ou não, essa voz funciona como recurso metaliterário, um “leitor” do narrador principal.
Desde o começo, Antônio relata o que vê e sente com uma clareza desconcertante. Meu pai teve oito filhos. Oito? O leitor pensa que acabaram as surpresas, e bem aí entra o quarto narrador: A mãe faleceu no último parto. […] o pai, antes de chorar pela mulher, puxou da cintura a faca e lhe abriu o ventre, salvando o menino. Ao invés do alívio que viria com o choro de um recém-nascido, instala-se o horror perante essa morte da mãe pelas mãos de Deus e depois, do homem. Apesar da pouca idade — oito anos — e da completa ausência de orientação, o guri percebe a sombra que se espalha sobre a casa a partir da morte da mãe, aos poucos envolvendo tudo em silêncio, especialmente a alegria. Os sorrisos e gargalhadas se tornaram escassos, observa.
Bênção e maldição
Este é o primeiro romance de Leonardo Brasiliense, mas é seu décimo livro. Com contos, minicontos e novelas foi finalista do Prêmio Benvirá e duas vezes vencedor do Prêmio Jabuti. A experiência está em cada página de Roupas sujas, desde a escolha de personagens. O número de filhos é grande o suficiente para dar conta da diversidade de temperamentos, mas não tão grande que seja inverossímil. As habilidades são bem distribuídas, ajustadas ao trabalho designado a cada um: Valentina cuidava do bebê aos 12 anos; Antônio, homenzinho já com oito, limpava as armas; os irmãos mais velhos, homens crescidos trabalhavam na enxada, as mulheres tocavam a casa.
Mas Brasiliense faz dessas habilidades um mote na vida de cada um, uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo. Geni, a mais velha, encarregada da cozinha, expressa sua raiva da irmã no manuseio da faca ao cortar um repolho — corta o dedo e deixa o sangue escorrer no repolho, aludindo a um “sangue envenenado” que irá servir na refeição. Já Antônio, apesar da familiaridade com armas, não consegue sequer matar passarinhos, como Ferruccio, seu irmão deseja: Eu limpava essa espingarda toda semana e agora ela parecia um objeto estranho, um ser estranho.
A tensão é praticamente um fio narrativo por si só. De um castigo escolar surge uma surra de fúria olímpica. De um acidente de trabalho na roça resulta uma amputação. O leitor fica de sobreaviso a partir da primeira página, e mesmo assim é pego de surpresa muitas vezes, pelas mãos hábeis do autor. O pai irradia violência com uma naturalidade animalesca. À sua volta, todos se comportam como presas: a voz baixa, os olhos baixos, os movimentos sub-reptícios. Nessa hierarquia bestial, os lagartos são arbitrariamente condenados a ocupar o degrau mais inferior. Pensando na recepção que teria Maria Francesca, a irmã que se rebela e casa antes da mais velha, Antônio reflete:
Tirando Pedro, eu me lembrava de todos os outros matando pelo menos um lagarto: Valentina com uma pedra, Ferruccio numa enxadada, Estevam jogou um na parede, o pai esmagou com o pneu do Fusca, dando ré. Uma vez, cortei a cabeça de um lagarto com o facão. Decapitado, ele agitou as perninhas por uns segundos, parou de se mexer, eu o joguei no formigueiro. Éramos uma legítima família de matadores de lagartos. Sei que Maria Francesca podia sair de sua casa e voltar para nós quando quisesse. Não a receberíamos com pedras, enxadas e facões, mesmo que ela voltasse rastejando.
Os graus da violência
A despeito da inocência, ou por causa dela, é arrepiante a dúvida de Antônio sobre onde exatamente se encaixaria o membro desertor da família. O grau de violência é a verdadeira medida das relações.
Passa o tempo — bem lentamente, pelas rédeas do autor, apesar do relato de Antônio estar delimitado por duas tragédias que ocorrem em curto intervalo. Entra o terceiro narrador, Valentina, já adulta, mãe de dois adolescentes em meio a um casamento infeliz do qual não sabe ou não quer sair. Quase todos os seus problemas são absolutamente prosaicos, as cartas que escreve ao irmão refletem o vazio, nem mesmo a tristeza é profunda. Da irmã solidária que foi aos olhos de Antônio, tornou-se uma borboleta um tanto desbotada. Ela mesma resume o personagem: E o presente me absorve. Na tentativa de juntar os cacos da família, revela apenas um fato novo, que se refere ao passado, naturalmente. O leitor sente saudades de Antônio — não do adulto insosso que ele parece ser nas palavras da irmã, mas do menino inteligente e dilacerado que foi. Mas essa descontinuidade na potência dos relatos dificilmente resulta de inabilidade. Há no mínimo uma hipótese que a explica.
Se por um lado, Roupas sujas é a decadência de uma família, acelerada pelas idiossincrasias dos personagens, por outro, há uma concentração de tragédias de fazer inveja a um Shakespeare — e nem por isso, menos convincente. Morte, mutilação, demência despencam feito lenta tempestade de raios sobre personagens tímidos, invejosos ou adúlteros. Segredos são as pontas que atraem os raios da tragédia. Os segredos esfriam as relações e inexoravelmente afastam uns dos outros. Conforme Antônio raciocina, o que não fosse dito não seria sentido, assim estaria a um passo do esquecimento, à beira da inexistência. Mas o segredo não desfazia o mal, que se acumulava até o dia em que o segredo fosse revelado — e todos são. Muitos são revelados ainda na infância de Antônio, e nunca são boas surpresas. No lugar de conselhos do pai ou de colo da mãe, são os segredos que orientam as escolhas das crianças.
Do segredo à culpa a distância é muito curta. O relato de Pedro, o caçula, está nas últimas páginas. Também adulto, distante do passado, continua ligado à família — que a esta altura é um esqueleto sem cabeça e sem tronco, só membros, um em cada cidade — pelo cordão da culpa. Em silêncio, reza (…) espero que um dia meus irmãos me perdoem por ter lhes arrancado a mãe de suas vidas e reconheçam que tudo que faço é pensando neles… É profundamente humano esse filho cheio de culpa, mas com a visão do todo que tem o leitor, intui-se que as falhas de caráter ou de saúde mental já estavam presentes enquanto a mãe vivia, e o máximo que poderia se esperar caso ela tivesse sobrevivido, seria que minorasse os danos. Na situação absolutamente antinatural dessa família, sem a mãe, quanto mais cedo cada um escapa do convívio, maiores as chances de sobrevivência. De felicidade ninguém cogita.
Felicidade e inferno
Para uns, família é a própria definição de felicidade. Para outros, é o inferno. Para a vasta maioria, família pode ser ambos, às vezes ao mesmo tempo. Ironicamente, em Roupas sujas, “famílias são eternas” é um refrão, mas esta família certamente não é eterna. A morte da mãe no parto é o começo do fim. A herança de violência e ódio passa a ser dividida quando o sangue ainda quente da mãe tinge a faca e as mãos do pai. Um ato desesperado, de agressão e ternura em partes iguais, marca todos para sempre.
Ao contrário da dinâmica da família, a prosa de Roupas sujas é limpa, cristalina, objetiva, o que reflete a linguagem do gaúcho, sem cair no pitoresco. No subtexto, as três crianças são as únicas que sabem decifrar a verdade por trás dos silêncios dos adultos. À medida que crescem e perdem a ingenuidade, geram seus próprios segredos, envoltos em seus silêncios. Um muro de silêncio cresce por si só. Basta assentar o primeiro tijolo. Talvez isso justifique a escolha do autor de incluir os relatos de Valentina e Pedro, apesar de que o de Antônio — “um romance dentro do romance”, como aponta Cláudio B. Carlos em sua resenha no blog Balaio de Letras — possui uma carga emocional muitas vezes maior. É possível enxergar os dois últimos relatos não como uma explicação, mas como uma demonstração da força do primeiro. Enquanto lê as cartas de Valentina e o texto de Pedro, o leitor se dá conta de que o menino Antônio está perdido, e talvez seja precisamente esta a intenção. Leonardo Brasiliense dá a deixa ao afirmar que queria narrar a história de uma família que não consegue ultrapassar suas perdas. É como um pesadelo recorrente. O que restou a uni-los são as perdas. É sobretudo nesse ponto que o romance regional de um ambiente pouco retratado até na literatura brasileira ultrapassa todas as fronteiras: nem todas as famílias são eternas, mas a história de toda família é uma história de perdas.