A reação de Osvaldo Orico à Revolução de 1930 — tornou-se diretor de propaganda da Frente Única Paraense (FUP), organização que surge em 1934 para se opor ao interventor nomeado por Getúlio Vargas — durou pouco: ainda no Estado Novo, foi nomeado a cargos diversos, inclusive diplomáticos; depois, eleito deputado federal, não hesitou em apoiar o ex-ditador no segundo período de governo, de 1951 a 1954. Orico, entretanto, está longe de ser um caso isolado — apenas seguiu a prática nacional dos acordos a qualquer custo, obedecendo não só às orientações da própria FUP, mas ao movimento nacional que, incluindo os comunistas mais ranhetas, fez vista grossa aos crimes da ditadura getulista e se aproveitou de postos na burocracia.
Poeta, contista, autor de biografias, ensaios e estudos sobre o folclore amazônico, Orico deixou um único romance, Seiva, publicado em 1937, quando também foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, pouco antes de completar 37 anos.
O enredo de Seiva é primário: Ellen Gray, filha do empresário e chefe da missão comercial americana no Tapajós, visita a região para conhecer a selva e os empreendimentos familiares. Numa excursão à floresta, perde-se do grupo, mas é salva por Uitá, empregado de seu pai, reencarnação, ainda que desvigorada, do alencariano Peri. Passam a noite na selva, quando instintos “genésicos” dominam o casal. De volta à civilização, o desfecho dramático: Ellen é mandada de volta aos EUA; Uitá, revoltado, deflagra uma greve que se transforma em conflito armado, pois a ciumenta Ritoca, apaixonada por ele, trai o movimento. Uitá e Ritoca, entretanto, seguindo caminhos diferentes, desaparecem na floresta, tragados, suponho, por sucuris ou plantas carnívoras.
As primeiras páginas da narrativa delineiam a personalidade da protagonista, Ellen, ressaltando o temperamento que desprezava “a agitação dos salões de dança (…) pelo prazer de leituras (…). Tinha a vocação da surpresa, do inesperado, e, sobretudo, uma indisfarçável antipatia pelos homens vulgares”. Voluntariosa e aventureira, demonstra “inaptidão para a vida do matrimônio numa constante fuga de si mesma”. O narrador ainda salienta o “excessivo pudor”, o “infinito zelo” que havia paralisado “todas as inquietações femininas”, de tal maneira que “todos os homens (…) pareciam-lhe fantoches ensinados”. Essa jovem imagina, para a região que visita, “uma topografia exótica, misteriosa e indescritível”, mas encontra, decepcionada, ainda em Belém, no início da viagem,
uma cidade como as outras, com a reta cimentada de seu cais em comércio com paquetes de todas as procedências; e, mais ao longe, elevando-se sobre a fila de armazéns de zinco cinza, cúpulas e coruchéus de mercados e igrejas, cumeeiras e cornijas de edifícios públicos, um quadro que nunca supusera deparar, embebida na miragem das descritivas que lhe haviam feito.
Tal personalidade complexa não alcança, contudo, vida independente. Marionete do narrador, destituída de vontade, será jogada de uma cena a outra. O narrador a descreve, nossa imaginação cria expectativas, mas Ellen jamais ultrapassa o estágio de figura num museu de cera: moldada com perfeição, parecendo humana, podemos observá-la durante horas, ir e voltar sobre as páginas, mas só encontraremos o que o narrador diz, sem nenhum sinal de que ela efetivamente se alegra, decide, reluta, sofre.
Ausência de trama
Na verdade, o problema de Seiva é mais grave: não há trama, só a retórica do escritor, num tom que, apesar do esforço para se aproximar da épica, jamais cria aventura — e por um motivo simples: os personagens não atuam, não têm vida própria. No caso específico de Ellen, suas características se diluem de tal maneira que, depois de se perder na floresta, ao ser encontrada por Uitá, entrega-se ao mateiro como um animal pavloviano, sem nenhuma hesitação, nenhuma dúvida — e, depois, nenhuma crise de consciência ou manifestação de prazer, arrependimento, felicidade.
O mesmo ocorre com Uitá, mero autômato musculoso, enaltecido em diversas páginas, mas que jamais comprova, por meio de uma decisão pessoal, o que o narrador afirma.
É a tragédia do leitor: ser obrigado a conviver com personagens desprovidos de memória, dicção e vontade, que raramente dialogam, não fazem abstrações, não tentam se antecipar aos fatos, não se questionam.
Quando chegamos à metade do livro já entendemos o porquê desse defeito: acima do enredo mal-ajambrado, encontram-se duas necessidades vitais do autor: demonstrar eloquência e relatar fatos curiosos, folclóricos, da Amazônia.
Obedecendo à lei geral de muitos dos nossos prosadores, Osvaldo Orico é retórico segundo a definição de Juan Carlos Onetti: repete elementos literários, ao invés de criá-los; trata-se de um aplicador de fórmulas prontas, nada mais. O leitor poderá aproveitar Seiva para compor uma lista de antonomásias, metáforas, enumerações, hipérboles e outras figuras, mas sempre com a linguagem que não ultrapassa o lugar-comum ou cria discursos bombásticos. O pai que, durante a noite, vela a filha, pois prevê o assédio do comandante do navio, transforma-se nisto: “(…) Embaixo da tipoia onde a pequena rendeira dormia seu humilde sonho de zíngara, velava o ardente zelo do jaguar nordestino”. O rio Tapajós é “um colorido tributário amazônico, que é uma espécie de vassalo verde do rei moreno”. Ellen não se aproxima da floresta amazônica, mas da “selva despida e violada pela cobiça de uma civilização curiosa e veloz”. Os retirantes nordestinos que migram para a Amazônia “personificam a angústia de uma região causticada pelo sol e devastada pela seca”, enquanto os moradores da floresta “exprimem a contradição dessa angústia, arrastando atrás de si o calvário das enchentes”. Não basta ao narrador repetir o chavão da floresta que “se estende, misteriosa e sombria” — ele precisa compor o discurso que ficaria bem na voz de algum populista, principalmente se transmitido em horário nobre e rede nacional:
Há que travar uma luta demorada, tenaz, contra essa muralha verde, que à primeira vista parece dócil com a sua trama de flabelos e seu festim de parasitas, mas que guarda, no fundo, o segredo das couraças, resistindo aos domadores velozes, e sensível, apenas, ao facão do seringueiro caboclo, o único violador venturoso dos seus atalhos.
Mas tudo pode ser pior quando o escritor mostra-se incapaz de conter sua verborragia. Depois da cena mal construída em que Ellen e Uitá, juntinhos na selva, entregam-se a seus instintos — sempre “genésicos” —, o narrador desembesta numa homilética biologista que explica o título do livro:
Vida é seiva.
Seiva é batismo das substâncias que se querem, que se penetram e que se unem para melhor se completarem.
Saúde e vigor da terra!
Sangue que a terra dá, em segredo, no conúbio subterrâneo das raízes que a apalpam, que a sugam, que se dão às suas fecundações silenciosas.
Noivado imperceptível do humo, que fermenta nas florestas, nas trufeiras, e nutre todas as espécies vivas. Todas.
(…)
Seiva é fecundidade. Não admite hesitações entre as raízes famintas. Neste solo, a regra de todas as espécies vivas é recebê-la.
(…)
Seiva é obediência a um mandamento. (…) É a cópia humana dos hialonemas, que mergulham as esponjas fibrosas nas grandes profundidades. Que realizam nas simbioses o abraço dos organismos mais diversos, — corpos que se desagregam e se associam em benefício de transformações que renovam e perpetuam a vida vegetativa.
Naturalismo rasteiro
Transpor o vocabulário biológico à literatura serve à pretensão de justificar qualquer comportamento humano. É mais fácil construir um personagem que só obedece a seus instintos, a seus impulsos, que obrigá-lo a fazer escolhas conscientes, questionamentos, o que exige do escritor observação, técnica ficcional e autoconsciência. No naturalismo rasteiro do autor, não: basta que os personagens sejam prolongamentos mecânicos da ordem natural da selva, nada mais.
Temos também a segunda necessidade vital de Osvaldo Orico: está pronto a sacrificar a continuidade da narrativa, desde que possa incluir, em cada cena, alguma informação folclórica. Não dispensa, inclusive, as listas de coisas típicas, transformando seu texto num relatório de curiosidades, festas, hábitos alimentares, animais que prenunciam acontecimentos bons ou funestos, mandingas. Há uma lenda escondida em cada curva do rio, em cada laço de cipó — e ela sempre interromperá a história, semelhante a um anúncio publicitário que oferecesse quinze dias na Amazônia, com diárias completas, em vinte suaves prestações. Seria melhor que o autor tivesse escrito mais um manual de folclore ou um tratado de etnografia — e não este insignificante guia turístico.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Orígenes Lessa e O feijão e o sonho.