As idades da poesia

Em "Troia Canudos", Jorge da Cunha Lima descuida da coesão nas releituras épicas, mas afirma sua força de lírico elegíaco
Jorge da Cunha Lima , autor de “Troia Canudos”
31/03/2018

O poeta Jorge da Cunha Lima volta a livro com Troia Canudos, após 40 anos sem publicar. Não que tenha escondido os poemas como um perfeccionista recluso, a exemplo de Dante Milano; seu hiato é o daqueles que, solicitados por outras ocupações, fizeram da poesia não propriamente um hobby, mas uma espécie de “felicidade clandestina”, para usar a expressão de Clarice Lispector. Joaquim Cardozo, o engenheiro poeta a quem Bandeira chamou de bissexto, é talvez o exemplo maior: na segunda edição da mesma antologia, retirou-o por já o considerar “contumaz”.

Na dúvida, arriscaríamos chamá-los de interjacentes. Em Cunha Lima, a circunstância faz com que exiba certa ingenuidade nostálgica, de mistura com o ceticismo irônico de homem vivido: meio Brás Cubas e Casimiro de Abreu.

Há um clima de alfândega literária nos textos de apresentação de Troia Canudos — quando Cunha Lima é referido em função de atividades outras em que se destacou — de secretário de Estado a presidente da TV Cultura “em uma de suas fases mais criativas”. A indulgência é perceptível, do mesmo modo que se nota no relevo dado às muitas referências literárias do livro — de Homero a Euclides da Cunha, passando por Joyce, Proust, Goethe —, como a atestar que se trata, sim, de um criador literário.

Talvez Cunha Lima tenha saído da política com alguma utopia teimosa, mas suas concessões soam menos de ideólogo do que de literato: traem uma busca de aceitação de que poderia prescindir. Brás Cubas, o irônico póstumo, às vezes entra em confronto com seu lado Casimiro de Abreu, como na anunciada renúncia a utopias (p. 40), responsável por uma das mais belas metáforas do livro — quando aproxima a idade da distância e confunde, na linha do horizonte, náufrago e barco:

Será descrença,
velhice ou melancolia,
isso de afundar
no mar Egeu
o barco denso,
e não deixar
navegar
o marinheiro,
no lugar
do náufrago?

Não é descrença, velhice nem melancolia, mas poesia amadurecida. Porém, quando se compraz com a implosão das “Troias Gêmeas” — o World Trade Center (o “mais belo/ espetáculo/ da televisão/ sem Homero/ para fazer/ a narração”), ou quando pretende que a rainha Helena, uma vez devolvida a Atenas, teria sido a “primeira burguesa” (“de volta ao lar monótono/ de um Menelau,/ insosso, na realeza”), seu imaginário soa involuntariamente ingênuo: lembra os rasantes de Drummond culpando o burguês pela morte do leiteiro (A rosa do povo) ou querendo, “sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan” (Sentimento do mundo). Mas logo se recupera e nos presenteia com um dístico de sabor clássico em que vai todo o “tempo presente”, do hedonismo das academias às guerras computadorizadas: “Há que derrotar Aquiles/ em qualquer parte do corpo”.

Memória coletiva
Em uma primeira visada, a possível unidade entre os episódios do cerco de Troia e da campanha de Canudos estaria no signo “muralha”, que o poeta considera o próprio “ego de Troia”. Antes de devassada pelo “cavalo de pau, ridículo e oco”, a muralha troiana o fora pela beleza de Helena; e a glória maior de Heitor, morto à margem da muralha, seria fundir-se à memória coletiva dessa construção. Já a cidadela de Antonio Conselheiro é a “Troia de taipas”, bela imagem que o poeta de 85 anos resgata de uma redação escolar.

No epílogo da primeira seção, Troia, o autor centraliza a figura materna — de Tétis, mãe de Aquiles — para inferir algo como um arquétipo junguiano, no qual se subentende a Virgem Maria: “nobre senhora/ transforma a justiça/ em misericórdia”. Essa redenção pela mulher seria a razão de ser da violência em Troia e em Canudos. Muito bem, mas — e a muralha? Como um rapsodo dispersivo, Cunha Lima parece esquecer-se de sua pedra fundamental. É certo que a retoma na abertura da seção Canudos, mas já não com a simbologia de verticalidade, emblema metafísico erguido pelos deuses (“identidade/ que transcende”), senão como dois muros — “um de pedra,/ o outro/ de túnica” — em estranha divisória entre “Ocidente” e “sertão”. E se a carnificina total do exército republicano supera a de Troia, Canudos subsiste não por muralhas ou mulheres, mas por ter-se tornado também um grande relato — “virou reportagem,/ a mais bela/ jamais contada/ depois da Guerra/ de Troia”. É o poeta cedendo ao jornalista que Cunha Lima também foi.

Parece evidente que falha no propósito de uma leitura conjugada dos dois momentos histórico-literários (Troia e Canudos), revisitando episódios, criando interpretações digressivas ou valendo-se de personagens — Penélope, Moreira César — para observar a vida contemporânea. De todo o devaneio épico, fica apenas a ciência de captar o “espírito de um povo”, aquilo que Hegel chamava de volkesgeist, e que será, em outras seções do mesmo livro, o núcleo de força responsável por grandes poemas, como os dedicados à Argentina, ou um cáustico O exercício do poder, dedicado à Alemanha.

Só por Tahina Can, uma série de dez elegias em espanhol que remete a lendas amazonenses da estrela d’alva, Cunha Lima já mereceria toda a atenção do leitor. Ali se cumpre o que Eliot dizia sobre o poeta que tenta dominar línguas estrangeiras: adquirir personalidades suplementares. O uso do espanhol não é mera demonstração de destreza, mas um ajuste formal ao tema, como se a língua de Cervantes se prestasse melhor à rudeza de algumas imagens. É uma série, inclusive, liberta de alguns preciosismos e paroxismos fáceis que povoam a escrita em português de Cunha Lima. Há poemas em inglês e em francês no livro — todos bem resolvidos. Nada, porém, supera a Sexta Elegía, quando se ocupa da paisagem na memória — “No basta vivirlo/ hay que recordarlo”.

Esse caminho de Troia para a elegia, Jean Starobinski o estuda em A tinta da melancolia: situa seu começo quando Dido, rainha de Cartago, ao contemplar uma muralha com representações de Troia, ordena a Eneias que conte a história da última noite da cidade. Na sequência, Ovídio exilado compara sua saída de Roma à fuga de Eneias em poemas de tom lamentoso. E Starobinski conclui que a permanência de Troia na poesia seguinte foi uma “reserva de memória” que permitiu aos poetas “reconhecerem a beleza triunfante e a dor da destruição, o ímpeto conquistador e a dor do exílio, as mil maneiras da palavra que comanda, suplica ou usa de astúcia”. Isso faz pensar no próprio autoexílio poético de Cunha Lima — enquanto usou a “palavra que comanda” — e na sua mais que evidente vocação elegíaca.

Os lugares de afeição do autor são reunidos em duas grandes seções: Europa e Américas, na sequência de Tahina Can, que remete a paisagens andinas. Há, portanto, uma persona lírica viajante, de par com a persona de leitor exercitada até então por Cunha Lima. Ambas se juntam em um longo poema ensaístico sobre a melancolia, com referências francesas que também remetem a leituras; não parece haver paralelo entre nós com esse grande louvor da “alegria de ser triste”, como a chamava Victor Hugo.

Lições, a parte final, possui algumas peças metaliterárias cuja força deve muito à luz refratada daquilo que o poeta foi: “tive a vaidade de um poder/ que me perseguia”, ou do enfrentamento sem pejos da ideia da morte, como no tocante Como se morre passarinho: “Voam apenas/ o necessário/ para não se perderem no ar”. Então Brás Cubas faz as pazes com Casimiro em Meus oitenta anos: “Oh que saudades/ que tenho/ do ocaso/ da minha vida”. Um lírico elegíaco se reafirma — cumpre-se de novo a velha ordem da rainha de Cartago.

Troia Canudos
Jorge da Cunha Lima
Laranja Original
441 págs.
Jorge da Cunha Lima
Nasceu em São Paulo (SP), em 1931. É poeta, autor de Ensaio geral, Mão de obra e Véspera de aquarius. Romancista, publicou ainda O jovem K. Tem formação jurídica, mas exerceu o jornalismo em Última Hora e na revista Senhor. Foi depois Secretário de Cultura do Estado de São Paulo, presidente da TV Gazeta e da TV Cultura. Fruto de um projeto perdido quando lhe roubaram o laptop, Troia Canudos foi integralmente reescrito e publicado em 2017.
Wladimir Saldanha

Nasceu em Salvador (BA) em 1977. Publicou, em poesia, Culpe o vento (2014), Lume cardume chama (2014), Cacau inventado (2015), Natal de Herodes (2017) e Arte nova (2021). Organizou e traduziu para o francês a antologia Poesia brasileira em contracorrente (2018), bem como a primeira antologia de poesia belga publicada no Brasil, A tentação das nuvens (2021). Os poemas aqui publicados são do livro inédito Aos que se perdem com as chaves.

Rascunho