Passeio numa livraria paulistana e vejo em destaque alguns títulos, em suas edições originais, do autor a ser resenhado. Um amigo me explica: houve boatos de que Elena Ferrante seria seu pseudônimo; hoje, é quase certo que, pelo menos, esposo dela esse escritor é. Entendo a curiosidade — entenderia mais se tivesse lido sua tetralogia napolitana.
Laços é a primeira obra de Domenico Starnone a ter edição brasileira. Dividido em três livros, o romance se inicia com as cartas de Vanda para o marido que a abandonou para viver com a amante: “Caso tenha esquecido, egrégio senhor, permita-me recordar: sou a sua mulher”. A formalidade do começo do primeiro livro, se antecipa o tom passivo agressivo de alguns momentos, não indica o turbilhão emocional das páginas seguintes.
Se a princípio ela tinha alguma esperança de diálogo — “Chega, me desculpe, sou exagerada mesmo. Conheço você, sei que é uma boa pessoa. Mas, por favor, assim que ler esta carta, volte para casa. Ou, se ainda não se sentir à vontade, me escreva explicando o que está acontecendo. Vou tentar entender, prometo.” —, a situação muda ao longo dos anos de separação.
Por muito tempo você disse disparates, com uma tranquilidade pedante, sobre os papéis em que nos aprisionamos ao casar — o marido, a esposa, a mãe, os filhos — e nos descreveu — a mim, a você, aos nossos filhos — como engrenagens de uma máquina desprovida de sentido, forçados a repetir para sempre os mesmos movimentos tediosos. E prosseguiu assim, citando de vez em quando algum livro para que eu me calasse. No início pensei que me falava daquele modo porque lhe acontecera algo muito ruim e você não conseguia lembrar quem eu era, uma pessoa com sentimentos, pensamentos, voz própria, e não uma boneca do teatrinho de Pulcinella que você estava montando.
Não ter nada a dizer e agir como se a mulher não existisse — ou não fosse uma pessoa, mas um personagem ruim: as citações que trago — mas não apenas — me remetem à leitura imediatamente anterior ao Starnone. Antes de pegar este, reli Nada a dizer, de Elvira Vigna. Apesar das diferenças (as maiores sendo a idade dos personagens, especialmente quando da traição, e a diversidade de vozes — que há em Starnone e não em Vigna, que concentra o romance no arguto olhar da narradora), os dois romances retratam de forma consistente a mulher traída e o ridículo da situação em que ela se vê e do papel que passa a desempenhar quase que involuntariamente.
— Eu errei em alguma coisa? — perguntou.
— Não, absolutamente.
— Então qual é o problema?
— Nada, é apenas um período complicado.
— Você acha complicado porque não consegue me enxergar.
— Enxergo sim.
— Não, você só vê aquela que pena no fogão, que mantém a casa limpa, que cuida das crianças. Mas eu sou mais do que isso, eu sou uma pessoa.
Releitura
Jhumpa Lahiri afirma no prefácio de Laços que “No romance de Starnone, a vida precisa ser relida para ser vivenciada por completo. Só quando as coisas são relidas, reexaminadas, revisitadas é que são compreendidas: cartas, fotos e palavras são dicionários”. Senti-me próximo dela quando compartilha a experiência de reler o autor que traduziu para o inglês: ao reler Elvira Vigna, notei nuances que me permitiram, dessa vez, alguma empatia pela figura do marido que trai a esposa e até mesmo da amante. Sim, esse tom sempre esteve lá, mas assim como ocorre com o protagonista de Starnone, “recorri […] à minha consciência, ao que no passado me parecera correto do meu ponto de vista, minhas convicções, meu pensamento, meu eu em transformação”.
Pois, sim, o segundo (e maior) livro do romance demonstra o quanto Aldo é o protagonista de Laços. A vida dele não se resume ao relacionamento — ao contrário de Vanda, circunscrita a cartas crescentemente rancorosas. Ele divaga sobre o envelhecer, sobre o amor, sobre liberdade e poder. Ele se perde em releituras no meio dos destroços duma casa destruída por ciganos “Mas paciência, segui em frente dispondo de um lado os livros bons e, de outro, os despedaçados. Mas depois cometi o erro de folhear alguns e quase sem querer passei a ler trechos que eu havia sublinhado sabe-se lá quando. Fiquei curioso. Por que tinha circulado certas frases? O que me levara a traçar pontos de exclamação ao lado de uma passagem que, relendo agora, me parecia insignificante?” e abre espaço para Jhumpa e o resenhista pensarem em suas releituras.
Starnone desenha um personagem humano. E, se parte de mim desejaria ver o mesmo tratamento ser dado às demais personagens (em especial às femininas), é certo que as escolhas do autor fortalecem o romance e potencializam a empatia que deseja que sintamos pelo protagonista.
O terceiro e último livro talvez seja o que mais há de diferente entre Starnone e Vigna: o ponto de vista dos filhos, Sandro e Anna. Essa parte, ainda que soe apressada (pois tem potencial para um livro ainda maior que o anterior), me assustou. Porque uma briga de um casal com filhos nunca é apenas entre marido e mulher. As mágoas se estendem de modos que não se imagina:
Como você é bondoso. Como todos vocês são bondosos com as mulheres. Seus três grandes objetivos na vida são: nos comer, nos proteger e nos fazer mal.
Há tempos que eu não esperava de um livro que tivesse um bom final — uma dessas coisas que acontecem quando lemos muito. Há tempos que não esperava que a última frase fosse tão marcante. Eu estava na casa de amigos cuidando dos gatos deles, uma casa que já tinha sido revirada por assaltantes numa de suas viagens; sem tirar o mérito do autor, me senti ainda mais próximo dos personagens.
O soco que conclui a leitura de Starnone ainda lateja.