Noite dentro da noite — uma autobiografia, de Joca Reiners Terron, é um livro instigante. Se pensarmos na ideia da leitura como um passeio pelos bosques, definição de Umberto Eco, a caminhada que Joca proporciona é parte de uma trilha labiríntica e pouco visível ao redor dos charcos de um pântano nebuloso onde, muitas vezes, molhamos as pernas até as canelas. Essa névoa onde imergimos não permite definições claras e nos proporciona uma sensação como aquela entre a vigília e o sono, quando não se sabe se o barulho ouvido no escuro é uma alucinação ou uma fera ameaçadora.
Ao partir de um acontecimento real da vida do escritor, o livro narra a vida de um menino que bateu a cabeça enquanto brincava de esconde-esconde. A concussão gerou convulsões, o garoto mordeu a língua e ficou mudo. Cuidado pelos personagens identificados como rata e o homem que se dizia seu pai, ele, epiléptico, começou a tomar barbitúricos. Por conta da medicação e do acidente, o menino perdeu as memórias de infância e, sendo assim, não sabe quem é. A história, contada em segunda pessoa, acompanha como você recupera sua identidade — quase como um romance de formação.
Dessa busca, a escolha da voz narrativa surge tanto pelo impulso do desafio formal — obstáculo necessário para a escrita de seus livros, segundo o escritor —, quanto pela falta de existência do protagonista. Em entrevista ao Estado de S. Paulo, Joca comentou que “todo livro é autobiográfico, mas são biografias editadas, distorcidas para se encaixarem na visão que temos de nós mesmos”. Sendo assim, se vida é necessária para a ficção, alguém que não se recorda da própria vida não pode escrever, a não ser que seja para se conhecer.
O subtítulo do romance se justifica, então, por ser “uma autobiografia na qual seu autor, em vez de se revelar, preferiu se ocultar”. Por isso, vamos retomando a memória junto do personagem e, a partir daí, convivemos com suas duas criações fictícias: as lembranças e os preenchimentos. Lembranças, também, já que a visão que temos de nós mesmos é formada por ficções, como o olhar num espelho que elege um ângulo como nosso verdadeiro. Acompanhamos a criatividade do menino preenchendo os buracos causados pela amnésia.
É uma trilha construída, criada pela imaginação e pela mentira, que nos leva até a verdade e, desse caminho, surgem os fantasmas, o onírico, o limbo, o pântano e o líquen.
A sua memória foi deformada pela imaginação, que preencheu lacunas deixadas pelo esquecimento com uma dança da mente que ocupou, de modo bastante natural, sua esburacada consciência dos fatos com a fantasia da invenção.
Essa dialética da invenção e da verdade extrapola o nível micro, das memórias do garoto, e passa a ser vista também num plano macro. A pesquisa histórica, que abrange questões sobre a guerra do Paraguai, os indígenas brasileiros, as famílias de imigrantes alemães, as ditaduras latino-americanas e a Segunda Guerra Mundial, mistura-se com o tom paranoico e delirante do livro e discute, principalmente, a existência daqueles que não enraizaram e dos que viveram duas vidas em uma.
A família do garoto é itinerante, assim como foi a de Joca Terron em sua infância. Eles ficam pouco tempo nas cidades em que moram, não possuem parentes próximos, não têm histórias ou lendas familiares. Em uma das cenas, o garoto vaga pela casa e observa que nela, sempre encaixotada e pronta para a próxima mudança, não há brinquedos velhos quebrados, chaves sem fechaduras ou baralhos com cartas faltantes da mesma forma que não existiam amigos de infância ou amigos próximos. Não havia rastro, nem história.
Além disso, o avô do garoto, imigrante alemão, renegou sua língua original e agravou o sentimento de não-pertencimento dos personagens de toda a família — desligados do território brasileiro, por serem imigrantes, foram também desconectados dos contatos com a terra natal, privados do conhecimento da língua. Eles foram apenas uma família de exemplo. Diversas personagens, como um médico responsável pelos experimentos nazistas com barbitúricos em judeus órfãos, participam dessa estrutura entre Alemanha e a mestiçagem brasileira. São pessoas perdidas no meio de um caminho.
Presos na mesma situação estão os personagens de vida dupla, como os perseguidos pela ditadura, os envolvidos com a Segunda Guerra e a família do menino. Curt Meyer-Clason, narrador da história, é um personagem real e porta-voz das identidades fraturadas que existem no livro. Nascido em 1910, foi acusado e condenado a 20 anos de reclusão por enviar informações ao III Reich — dados que causaram o bombardeiro de navios brasileiros e mataram cerca de 600 pessoas. Depois de cumprir cinco anos de sua pena, ele resolveu se dedicar ao ofício da tradução e foi responsável pela divulgação de diversas obras latino-americanas, como Gabriel García Márquez, Guimarães Rosa e Ferreira Gullar.
A culpa que Meyer-Clason carrega consigo também serve de amostra para outro elemento fronteiriço presente no livro: os fantasmas.
Fantasmas
O espectro está preso no meio do caminho, já que não está nem vivo e nem morto. Sentimos ele mesmo depois de finado e, como um membro fantasma, damos continuidade às suas vidas, nos deixamos guiar por eles. Essa forte presença da morte nos une:
Talvez os fantasmas fossem feitos de pura recordação que sumiria com o esquecimento (…). Porém estes deixavam rastros nos vivos, mesmo que fossem apenas fiapos esgarçados pela memória cada dia mais distante, mesmo assim talvez restasse nessa frágil ligação um elo com aqueles outros mortos, e outros, e outros, numa cadeia até o início ou o final dos tempos. Estaríamos todos interligados por um fio, porém pela fibra mais forte desse fio que une a vida à morte.
Ao lado do fantasma surge também uma figura sobrenatural, um líquen que acompanha a narrativa durante todo o livro e é chamado de pyhareryepypepyhare. Derivada da língua dos mbyá-guarani, a palavra denomina “o instante mais denso de escuridão que antecede o alvorecer incerto, o instante mais negro de toda a existência pois não se sabe se haverá o seguinte”, é quando um dia morre e ainda não se sabe se haverá outro, é a noite dentro da noite.
Da mesma forma que toda a narrativa, sua definição é instável, envolta pela névoa; ela “é feita de visgo, de breu, de limo, de musgo, de líquen, é o céu um segundo antes do trovão, é ar espesso, água de poça que restou da chuva, fuligem se dissipando na noite, é cinza voando na escuridão”. Ela contamina todos aqueles que vivem em lugares incertos, sem raízes, como um vírus. Ela, assim como a narrativa, está no limbo e ocupa os espaços entre os elementos dos binômios do livro, como a vida e a morte ou a memória e a invenção.
Narrador brasileiro
Enfim, Noite dentro da noite contribui para o diálogo sobre a identidade do narrador brasileiro contemporâneo. Quando Daniel Galera, em Barba ensopada de sangue, escreveu a história do narrador sem nome que, com uma doença que impede a memorização de rostos, parte em busca do avô para se encontrar, vimos uma busca que se calcou na tradição familiar e nas lendas de uma cidade pequena litorânea. Em Joca Terron, por outro lado, tivemos um diálogo com a tradição alemã, as histórias latino-americanas das ditaduras e dos genocídios, as epopeias familiares e na deformação da realidade pela memória.
Em ambos os casos, temos um narrador em busca de sua própria voz, alguém preso entre a nostalgia de um passado significativo e um presente confuso, deslocado. Não é por acaso a escolha de um alemão, tradutor de obras brasileiras, como narrador da autobiografia de Joca Reiners Terron. É um acerto de contas. Segundo o próprio autor, é isso que a literatura deve fazer: “A literatura deve recuperar aspectos da nossa realidade e da nossa experiência pessoal pela imaginação”.