“Vitimados senhores,
Enquanto Imre Kertész criou uma narrativa sobre seu próprio período de horror, Svetlana Aleksiévitch, laureada em 2015 “por seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e coragem em nosso tempo”, fez diferente: ela deu voz às vítimas esquecidas — às dores inauditas das mulheres que tiveram suas vidas despedaçadas. Em seu discurso aqui, ela nos falou sobre seu projeto: “Flaubert chamou a si mesmo de caneta humana, eu diria que sou o ouvido humano”. A escritora ucraniana enfrentou e respondeu à pergunta feita por Spivak no título de seu livro Pode o subalterno falar? Ela, partindo das experiências submersas dos subalternos e dos refugos humanos, deu vez e voz aos invisíveis e marginais.
(Eu te idolatro, Svetlana).
A laureada fez da morte — “o principal mistério da vida” — matéria para projetos e reflexões literárias. Um motivo de estranhamento, de apavoramento, de arroubamento. Para ela, as mulheres eram as únicas narradoras confiáveis de qualquer guerra. As verdadeiras responsáveis por fazer emergir o discurso do esquecido e do desprezado. Só elas podem resgatar a narrativa oficial repousada na dor da incompreensão. Somente as mulheres são capazes de narrar e enfrentar o paradoxo de “dar a vida” e de “receber diariamente a visita da morte”. Nas palavras de Svetlana: “Quem conta a guerra são as mulheres. Choram. Cantam enquanto choram”. Assim, uma tentativa de compreensão do ocaso vem das lágrimas, do sofrimento e do resgate do discurso “delas”. Bravo! Os homens — malditos sejam! — adulteram as narrativas das guerras. São os responsáveis por criar heróis, mitos e mentiras. E muitos deles até inventam alguns momentos de felicidade: “As pequenas e grandes, famosas e desconhecidas (guerras) foram escritas por homens sobre homens”.
“A guerra ‘feminina’ tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas as pessoas, mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos que vivem conosco na terra sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível.” O abismo ainda é mais profundo do que se imagina. É a luta, a batalha instintiva e insana — viral — do ser humano pela própria extinção. Pelo extermínio de tudo que há e houve ao seu redor.
(Eu te abraço, Svetlana. Deixe-me sugar seu vigor literário?)
Porém, mesmo diante do fim, ainda continuamos a falar. A narrar a partir do discurso censurado por anos. Sim, Svetlana, concordo que a sensibilidade da narrativa feminina seja outra. De ordem superior. Com uma compreensão mais sensata e humana. Ou, ao menos, ludibriada pelas suas belíssimas palavras: “Para nós, a dor é uma arte. Sou uma historiadora da alma”. Svetlana é a verdadeira narradora. A minha narradora. Temos um projeto bem-definido: “Eu gostaria de ler sobre o que as pessoas conversavam em casa. Como partiam para a guerra. Que palavras diziam no último dia e na última noite antes de se separar daqueles que amavam. Como se despediam os guerreiros. Como eram esperados na volta da guerra… Não os heróis e chefes militares, mas as pessoas comuns”. E é isso que tentamos, ou inventamos, fazer.
Mas Svetlana também se engana, e nos engana, o tempo todo. Essa é a sua função como escritora, jornalista e ficcionista. Ela se deixa envolver pelos sentimentos e pela falsidade presente neles. “Construo templos a partir de nossos sentimentos… não me interessa o próprio acontecimento, mas o acontecimento dos sentimentos.” Svetlana é uma ficcionista, como todos nós. Sentimentos são invenções instintivas, senhores doutores. Neurotransmissores seletivos que nos ludibriam o tempo inteiro, fazendo-nos crer e sentir que somos especiais e únicos. E também, por isso, arrogantes e audaciosos a ponto de desejarmos “narrar” e “tecer” outras Odisseias e Penélopes.
As guerras não podem ser contadas. Poetizadas. Narradas. Há uma limitação da linguagem, uma impossibilidade de representação, um impedimento de compreensão. Senhores, para que pudéssemos contar um infinitésimo somente dessas malditas histórias, deveria haver no mínimo uma forma de sentir o cheiro pútrido dos dejetos, da bosta, da nossa própria bosta misturada aos corpos dilacerados. Teríamos que conceber um mecanismo que nos permitisse ouvir o som enlouquecedor das armas, dos gritos, das dores, das lástimas, das fornalhas, da catarse coletiva. Do desespero das mulheres amamentando seus bebês já há muito sem vida. Teríamos que inventar uma maneira de o leitor experimentar a náusea e o gosto amargo da água regada pelas cinzas dos exterminados, da sopa contaminada pelas lágrimas inúteis e desenganadas dos mortos-vivos e dos sádicos, do pão com sabor amargo de persistência, de adiamento do calvário e de esperança inútil. Colegas, para se falar das guerras, teríamos que criar um artefato que saísse dos nossos livros. Que fizesse sentir dor, muita dor, uma dor próxima do sufocamento e do inferno. Que mostrasse a ausência de sensibilidade, a perda da possibilidade de dar e receber carinho, a privação total de um abraço como conforto. E isso não conseguimos fazer. Por quê, meus malditos colegas, por que ainda insistimos em narrar guerras e genocídios? Em escrever satiricamente “literatura”? Em compor poesia, sorrisos e lágrimas? Em premiar escritores espúrios? Tudo isso é inútil, senhores: o que fazemos não passa de caricatura e falsificação.”