A montagem de uma história exige muitos cálculos e habilidades narrativas. O romance compreende uma história com muitos personagens em sequência, e com muitos acontecimentos que, afinal, formam o enredo. Mas a novela tem um só episódio com muitos fatos — sequência de pequenos episódios que não se separam da linha central.
A equação, portanto, é feita assim: no romance, vários episódios paralelos formam a história; na novela, um só episódio conta o enredo; tudo isso nos remete à definição que Cortázar tinha daquilo que é romance e o que é conto — sendo que o conto é, muitas vezes, uma novela curta —, assim, o conto é uma luta de boxe que termina no primeiro round por nocaute e o romance é uma luta de boxe que termina no último round, por pontos.
O romance seduz o leitor a cada palavra, a cada frase, a cada parágrafo, a cada capítulo, até deixá-lo sem sentidos, inteiramente seduzido, com respiração tensa.
Cada ficcionista, porém, tem sua habilidade sedutora de forma a envolver completamente o leitor de acordo com o seu plano de montagem que, afinal, é o que mais importa na ficção. Tomemos assim o exemplo de três monumentos literários da humanidade com montagens diferentes, embora com o mesmo tema: Anna Kariênina, de Tolstói; Madame Bovary, de Flaubert, e Dom Casmurro, de Machado de Assis. Como ocorre a montagem — ou a montagem inicial desses três grandes livros? Vejamos:
Anna Kariênina
O romance tem início com o que chamo de “caso emblemático”. De forma a colocar o leitor dentro do tema, mas não dentro do conflito. E usa uma frase que nos leva para a intimidade do texto: “Todas as famílias felizes se parecem entre si, as infelizes são infelizes à sua maneira”.
Havia grande confusão em casa de Oblonsky. A esposa acabava de saber das relações do marido com a preceptora francesa e comunicara-lhe que não podiam mais viver juntos. Durava havia três dias a situação, para tormento não só do casal, mas também dos demais membros da casa, e da criadagem. Todos se davam conta de que não havia mais razão para manter aquele convívio, sentindo que as pessoas que por acaso se encontrassem numa estalagem teriam talvez mais afinidades entre si.
No plano geral, o narrador mostra como do ponto de vista exterior o conflito atingiu e modificou o ambiente exterior:
Ela, a esposa, não saía dos seus aposentos; há três dias que o marido não parava em casa, as crianças corriam de um lado, como que perdidas, a preceptora francesa se indispusera com a governanta inglesa e escrevera a uma amiga pedindo que lhe arranjasse outra colocação; na véspera o cozinheiro abandonara a casa à hora do jantar; o cocheiro e a copeira tinham pedido que lhe fizessem as contas.
Em seguida, o narrador se detém no estado de espírito das personagens, embora com algumas informações sobre o estado geral da história, destacando o conflito interior, recorrendo a um sonho do personagem, que desloca o tema central:
“Como? Como era?”, pensou, lembrando-se do sonho que tivera, “como era aquilo?” Ah, já sei. Alabine dava um jantar em Darmstadt. Não. Não era em Darmstadt, era na América. Sim, no sonho Darmstadt ficava na América. Sim, Alabine servia um jantar em mesas de Cristal.
Na verdade, o autor coloca sobre o narrador a responsabilidade de conduzir o texto, optando não pelos fatos, mas pela psicologia, de forma a criar a ambientação, ou o clima, considerando as consequências. “E as mesas cantavam Il Mio Tesoro, talvez não fosse Il Mio Tesoro, mas qualquer coisa melhor, e havia umas garrafinhas, que, afinal, eram mulheres”.
Dessa forma demonstra-se que o personagem tem a mente desorganizada no momento em que acorda, embora não suficientemente pelo drama.
Na sequência, o estado psicológico de Oblonsky ainda é trabalhado até que a mulher Daria faz sua aparição no romance com o rosto “abatido”. Ou seja, os personagens são colocados em oposição. Somente mais tarde é que o conflito central toma vulto.
Assim:
Os olhos de Stephane Arkadievitch brilharam alegremente e, sorrindo, ficou-se a cismar: “Sim, era muito bonito, estava muito bem”. E havia mais coisas magníficas, mas não podia descrevê-las nem por palavras nem em pensamentos, nem mesmo desperto como estava.
A metáfora em Madame Bovary
Em Madame Bovary, Flaubert lança mão de uma cena metafórica para definir o caráter do personagem Charles e, em consequência, o caráter da história, o que parece estranho, muito estranho porque não parece ter vínculos com a trama.
Estávamos em aula quando o diretor, seguido de um novato vestido modestamente e um servente sobraçando uma grande carteira. Os que dormiam despertaram e puseram-se de pé como se os tivessem surpreendido no trabalho.
O diretor fez um sinal para sentarmo-nos, depois, voltando-se para o diretor:
— Sr. Rogério — disse a meia-voz — eis um aluno que lhe recomendo. Vai para a quinta classe. Se a aplicação e o comportamento lhe forem bons, passará para os maiores, por causa da idade.
A um canto atrás da porta, mal podíamos ver o novato. Era um rapaz do campo, de quinze anos, mais ou menos, mais alto que qualquer de nós. Os cabelos rentes sobre a testa, como um sacristão de aldeia, um aspecto compenetrado e acanhadíssimo. Embora não fosse espadaúdo, a jaqueta preta de botões pretos, muito apertada nas ombreiras, devia incomodá-lo bastante. Pela abertura das mangas, viam-se dois punhos vermelhos, acostumados à nudez. As pernas enfiadas em meias azuis saíam-lhe dumas calças amareladas, muito repuxadas pelos suspensórios. Calçava uns sapatos grosseiros, mal engraxados, reforçados com pregos.
Começou-se a recitar a lição. Ele era todo ouvidos, atento como a um sermão, sem ousar mesmo cruzar as pernas ou apoiar-se nos cotovelos.
E, às duas horas, com o toque da sineta, o professor teve de avisá-lo de que era preciso entrar na fila conosco.
Neste caso, observa-se uma aparente fuga do tema com as cenas, demonstrando, metaforicamente, o caráter de Charles, sem qualquer referência, mesmo de longe ao tema. Cabe ao leitor compreender e examinar o texto cuja história somente será identificada bem mais tarde.
Dom Casmurro
Machado de Assis também opta pela apresentação do personagem, mas em sentido inverso. Se Charles é apresentado na infância, Casmurro é apresentado na velhice, e o tema também não é referido. Veremos agora:
Uma noite dessas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
— Continue, disse eu acordando.
— Já acabei, murmurou ele.
— São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios e acabou alcunhando-me Dom Casmurro.
Destacamos, então, que embora trabalhando temas iguais, os autores criam estratégias diferentes para seduzir o leitor a estabelecer movimentos diferentes.