Na boa literatura, algumas vezes, há escritores que não conseguem trilhar o caminho da normalidade, isto é, são pessoas que levaram uma vida desregrada, ultrapassando todos os limites estabelecidos pelas convenções sociais. Na língua portuguesa, o exemplo é Fernando Pessoa. Na francesa, temos um Baudelaire e um Rimbaud. Há autores que enlouqueceram, como Robert Walser. Outros se suicidaram, como Virginia Woolf e Paul Celan. É certo que vida e obra não se devem misturar mas, às vezes, quando falamos sobre livros de um desses autores, vem a pergunta difícil de responder: por que um escritor genial teve uma vida tão extravagante, por que alguns dos grandes escritores não são pessoas normais?
Arco de virar réu, de Antonio Cestaro, não responde a esta pergunta e, talvez, não apresente um autor com as características acima, mas é um romance em que o narrador vai, pouco a pouco, enlouquecendo. Marcelino Freire, na quarta capa do livro, diz: “O autor deste livro ficou louco”. Lemos o pequeno trecho do contista pernambucano e concluímos: sim, ficou louco, mas não o autor, o narrador. Talvez para o leitor não importe este pequeno detalhe, a diferença entre autor e narrador. Afinal, todo aquele que conta uma história é um tipo de autor, e o narrador faz parte deste circuito.
No início da narrativa, há, como epígrafe, o célebre início de Anna Kariênina, de Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A narrativa de Cestaro é em primeira pessoa, e o narrador já inicia sua história com uma cena de decadência, a imagem de uma casa corroída pelo tempo: “Eu dizia a ele que a dobradiça havia cedido ao peso do tempo e ao inabalável apetite de cupins de incontáveis gerações”. Logo saberemos sobre sua família. Ele é o primogênito, e desde o começo esteve na “mira das incumbências”. Ocupou compulsoriamente os deveres do pai, “que se lançou fácil num segundo casamento mesmo antes do nosso destino ser manchado de incertezas”. Há a mãe, a irmã caçula e um irmão que, pouco a pouco, apresenta sintomas de esquizofrenia.
Misturado a estes ingredientes, há a profissão do narrador: alguém que pesquisa a cultura Tupinambá: “Perpasso, através da biografia dos objetos, ocorrências regulares e tragédias”. Esta última palavra deve ser observada, porque vai permear toda a narrativa. Há a tragédia Tupinambá; a tragédia em relação a Pedro, irmão do narrador, que será um tipo de agente de corrosão da própria organização familiar; por último, a derradeira das tragédias, o enlouquecimento gradual do narrador-protagonista.
Numa narrativa desenvolvida em quatro partes, com capítulos relativamente pequenos, Cestaro cria um romance de alta voltagem, não se preocupando, como todo bom autor, em agradar a ninguém. Seu livro apresenta boas questões.
Confinamento
A primeira delas é a derrocada da cultura tupinambá. Embora o autor não mergulhe a fundo nesta ramificação da cultura Tupi, o que fica para o leitor é o desaparecimento de uma rica manifestação pré-portuguesa que, mesclada a posteriori à cultura europeia no calor dos trópicos, não poderia gerar outra coisa senão o gradativo enlouquecimento. Podemos comprovar isto através da remanescente cultura indígena existente por todo o país. Não sobraram muitas referências de uma nação que poderia ser considerada prototípica do Brasil. Mas, através de sua herança simbólica, de suas guerras para preservar a terra, o que se observa são despojos de uma nação marginalizada, muito semelhante à marginalização e à discriminação imposta ao louco durante muitos séculos. O louco no romance de Cestaro, personificado primeiramente em Pedro, dirige-se, assim como aconteceu ao índio, cada vez mais para o interior do país, sempre no seu espaço de confinamento.
A segunda questão é a falência familiar. A ausência do pai e a tentativa de substituí-lo pelo filho mais velho não deixam de ser uma cisterna com suas fissuras, capaz de explodir mais adiante e arrastar boa parte de toda a família. Aliás, todas as famílias que desfilam neste romance têm o seu ponto de derrocada, inclusive a do narrador, que é corroída pela loucura de Pedro e, como se não bastasse, também pela de si próprio.
A questão mais premente no livro é a própria loucura. Na adolescência, ao ganhar um jogo de guerras, Pedro acaba por personificar toda a movimentação e possibilidade de destruição que os conflitos podem arrastar. Este personagem passa a ter comportamentos que envolvem a movimentação de generais, coronéis, tropas, estratégias de batalhas e conflitos finais.
O ponto de refluxo desta história complexa e instigante é a linguagem desenvolvida pelo irmão do narrador, uma mistura de poesia e prosa que eleva a construção linguística a níveis inesperados.
Deixem a minha voz passar livre e selem o meu tordilho, que irei ao acordo amanhã com o nascer do sol e não voltarei sem a certeza de que nossos roseirais serão poupados por pelo menos dez anos. Deixem na retaguarda as formigas da sala de banhos. Elas saberão o que fazer no fracasso do acordo.
Próximo ao final, a loucura já é do próprio narrador, que esmera nas observações sobre o mundo à sua volta: “Pedi à Dinalva que traga caneta e uma folha em branco para anotar a tragédia que deu o tom de melancolia na garganta do pássaro. As minhas mãos tremem e transferem para a caligrafia o inverno interior que ameaça esfriar o meu corpo para sempre”. Loucura e poesia jamais estiveram tão próximas.
Voltando ao mencionado no início, quando citei autores que conviveram com o desregramento, em Arco de virar réu, o narrador dá uma volta completa no labirinto criado pela esquizofrenia, mostrando, através da escrita, a necessidade de ordenar o caos, a vicissitude de maquiar a falta com outra e ainda outra falta. O narrador, quando ainda ocupa o espaço da sanidade, vai com a mãe à procura do irmão, mas os passos de ambos não traçam a possibilidade de retorno. Tudo acontece como se eles quisessem resolver um problema que está bem acima do possível. A solução encontrada pelo personagem masculino é entrar no jogo e assumir o lugar do irmão — uma solução ainda que provisória, mas que se completa na busca da poesia.
Baudelaire, Rimbaud, Fernando Pessoa, Paul Celan e outros fizeram o mesmo caminho, senão o da loucura, o da tentativa de dela escapar, criando mundos que seriam admirados depois por muitos leitores. Mas estes não teriam régua para medir a dor de seus autores. Meçamos, aqui, ao ler Arco de virar réu, a dor que a literatura é capaz de testemunhar e de representar.