Dar forma e borrar a margem

Por meio de cartas, entrevistas e ensaios, "Frantumaglia" descortina um pouco da vida e obra da enigmática Elena Ferrante
Ilustração: Tereza Yamashita
30/12/2017

“Mas que livro seria? Uma espécie de epistolário? E por que deveríamos publicar minhas cartas? E por que as cartas que eu enviei para você por um ou outro motivo editorial, e não as cartas destinadas a amigos e parentes ou as cartas de amor ou de indignação política ou cultural, de maneira a ir realmente ao fundo da fatuidade? Por que sobretudo, acrescentar tanta falação minha aos dois romances?” É como Elena Ferrante questiona uma de suas editoras, Sandra Ozzola, quando recebe a proposta de reunir os fragmentos que dariam corpo à primeira edição de Frantumaglia, ainda em 2003.

Na época, em razão do lançamento do mais recente livro da autora, Dias de abandono, ela concedeu entrevista a uma publicação italiana, que perguntava sobre suas personagens, a relação destas com as respectivas mães, a herança de Nápoles, entre outros temas presentes nesta e na narrativa anterior, Um amor incômodo. As respostas, no entanto, ultrapassaram os limites das perguntas e tomaram forma de ensaio, onde, para falar sobre dor, Ferrante é remetida a uma palavra de sua mãe, em dialeto napolitano, rastro do seu passado que tanto ecoa em sua obra, e que não tem correspondente em italiano: “frantumaglia”. Esse termo volta a aparecer em outras entrevistas para falar do que acomete suas narradoras escritoras e para pensar sua própria escrita. Na ausência de uma tradução precisa, “frantumaglia” só pode ser definido com imagens, como a de “detritos em uma água lamacenta do cérebro” ou “ uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se revelam ao eu” ou ainda “o depósito do tempo sem a ordem de uma história”. É o emaranhando nebuloso e disforme, desmarginado para usar uma palavra da Série napolitana, e que, com a narrativa, ganha contorno.

Dar forma também é algo que reincide nesse mosaico de cartas e entrevistas. Em outro ponto desse ensaio, Ferrante conta sobre as lembranças da mãe trabalhando como costureira, como a Amalia de Um amor incômodo, e a atração que era para a menina de então ver os retalhos de tecido se unindo para receber o formato de vestidos, ainda mortos, que só ganhavam vida quando as clientes da mãe os vestiam. E não é à toa que ela responde em uma entrevista posterior que seria costureira se não fosse escritora. Esse talvez seja um dos aspectos mais interessantes de Frantumaglia: o entrelaçamento do passado desta que é pseudônimo com o material de suas narrativas. E mais, pensar na marca que sua própria mãe deixou, sendo a maternidade algo tão recorrente em suas histórias. “Minha mãe, com alfinetes, agulha e linha, daria forma ao tecido, a forma precisa de um corpo, ela era capaz de fazer corpos de tecido”, lembra. Afinal seria escrever díspar de costurar? Ao bordar de dia e desfazer o trabalho de noite, Penélope mantém Ulisses vivo. Unir as palavras para dar corpo a uma narrativa não seria também uma forma de costura?

A verdade das mentiras
As feridas da infância são apresentadas a partir de suas personagens, como motor da narrativa e ponto de partida criativo. Diante dessa desordem cronológica da dor da “frantumaglia”, há uma espécie de corte, de reordenação criadora para dar conta disso que parece exceder as palavras. E daí a escrita crua e a predileção por histórias que escapem de qualquer coerência. A raiz da escrita nas reminiscências é mais que uma questão de origem. Diz mesmo sobre o estilo da prosa de Ferrante. Ela se define como uma narradora, que prioriza a busca pela verdade, o que ela vê como a razão de existência da ficção. Na obra de Ferrante, a superfície mantém relações obscuras com os subterrâneos, seja do texto, do próprio eu ou da cidade. E essa declaração também vai além da aparência. Não é suficiente para entendê-la uma compreensão engessada de verdade, que é muito diferente de verossimilhança. Trata-se aqui de “orquestrar mentiras que dizem, rigorosamente a verdade”. E o que é essa verdade? É ir até o que a escritora chama de fundo mais escuro, é “acertar as contas, mesmo que confusas e arriscadas, com aquela superabundância, em vez de me sentir segura dentro de uma esquematização que, como tal, acaba sempre excluindo uma boa quantidade de coisas verdadeiras porque são perturbadoras”.

Diante dessa recusa de esquematização, os fãs da escritora podem encontrar o ponto alto de Frantumaglia nos trechos que a própria censurou de seus romances, justamente porque acreditava que eles seriam muito óbvios ou sintéticos de alguma teoria ou leitura que a influenciaram profundamente, e, portanto, carentes de verdade. Um desses, retirado de Dias de abandono, relata o desconforto de Olga, a protagonista narradora, ao observar a filha de sete anos se masturbando. Cena desconcertante, pelo teor dessa verdade perturbadora que Ferrante nos fala, e tão relevante em tempos em que assistimos à tentativa de neutralização do corpo nu e em que a arte parece passível de regulação por parte de autoridades que dizem querer nos proteger de nós mesmos.

“A literatura se faz com o emaranhado”, uma das frases tão simples quanto potentes, que aparecem como resposta de questionamentos sobre o que a motiva escrever. Emaranhado que é sempre busca, percurso nunca resolvido, que tenta se aproximar de um mal-estar tão remoto quanto inatingível. “As feridas da existência são incuráveis e você escreve, reescreve a respeito esperando ser capaz, mais cedo ou mais tarde, de construir uma história que definitivamente dê conta daquilo”, é o que Ferrante responde quando perguntam se na verdade sua obra toda seria uma só história. E não é mesmo unidade que encontramos nas similaridades das narrativas, é uma espécie de circunscrição do que foge, do que escapa, das instabilidades do eu que extrapolam as margens.

A composição da narrativa a partir da dor da “frantumaglia” e as possibilidades de expansão das personagens têm ressonâncias que aparecem nas correspondências de Ferrante com Mario Martone, que dirigiu a adaptação fílmica de Um amor incômodo, e com Roberto Faenza, responsável pela releitura de Dias de abandono. Além de pensar a representação visual de uma história criada pela palavra e os desafios de adaptar uma narração em primeira pessoa e a posteriori, Ferrante faz uma sugestão que concerne essa forma oscilante e perturbadoramente honesta de suas criações. Nos comentários reticentes que faz nos roteiros aparece um requisito apenas: “eu preferiria que o personagem mantivesse sua ambiguidade”.

A genealogia de um disfarce
A primeira edição brasileira de Frantumaglia, certamente motivada pelo sucesso da Série napolitana, corresponde à terceira italiana. A primeira, de 2003, decorre da riqueza da longa entrevista de Ferrante, que não permitia edições justamente porque o novo formato excedia muito o tanto de vida que uma simples entrevista poderia conter. A segunda contém a adição de alguns textos inéditos, como um ensaio em que relaciona o poder de um proprietário de unidades residenciais em Nápoles com Silvio Berlusconi, uma resenha sobre a adaptação fílmica de um conto de Joseph Conrad, que serve de gatilho para a autora pensar sobre o que chama de “livros de ninguém” e algumas entrevistas e conversas com leitores na ocasião do lançamento da sua terceira história, A filha perdida. A última edição abarca as entrevistas, dessa vez para jornalistas de diversos países, sobre a Série napolitana. E com essa expansão geográfica, o que já tinha sido discutido a exaustão pela mídia italiana volta a ganhar foco: o pseudônimo.

Mesmo para quem não leu os livros de Ferrante, Frantumaglia levanta questões pertinentes sobre o papel do autor no contemporâneo. Não são as raras as perguntas que insinuam que o mistério por trás do pseudônimo se sobrepõe à relevância da prosa da autora. “O que senhor chama de enfatizar, se for baseado nas obras, na energia das palavras, é um enfatizar honesto. Muito diferente é a ênfase midiática, o predomínio do ícone do autor sobre a própria obra. Nesse caso, o livro funciona como a blusa suada de um popstar, peça de roupa que, sem a aura da celebridade, é totalmente insignificante”, responde a um jornalista. O que sobressai dessa discussão é, em primeira instância, uma reflexão sobre a industrial cultural. Ferrante corrige os jornalistas quando eles falam de anonimato, afinal se ela fosse anônima, eles não teriam como sequer procurá-la. Ela destaca que escolheu manter preservada sua esfera íntima, o que se mostrou necessário inclusive para a sua produção literária. E, de certa maneira, as insistentes perguntas sobre a opção de se manter longe dos holofotes, as atribuições de autoria de seus livros a outros escritores italianos e até a especulação de que haveria mais de uma pessoa por trás do pseudônimo, acabam por confirmar a sua decisão e a crítica à centralidade da figura do autor em detrimento da obra, o que ela chama de “hierarquias jornalísticas — o que importa são os mistérios, em especial os irrelevantes, e não a leitura”.

A relação pretensamente coesiva que parte do autor e fixaria unidade à produção deste foi algo pensado por Foucault ainda na década de 1960. E tantos anos depois, mesmo com a declaração de óbito do autor sugerida por Barthes, não deixa de ser lastimável que a abordagem da obra de Ferrante pelos meios de comunicação persista tanto na tentativa de elucidação de quem está por trás do pseudônimo. Até porque em nada isso somaria à sua obra, é difícil pensar em qualquer serventia que ultrapasse o limitado recorte do furo de reportagem e o objetivo de vender jornais.

Na carta de abertura de Frantumaglia, a autora explica a sua decisão de distanciamento com a figura da Befana, personagem folclórica italiana que voa em uma vassoura e presenteia as crianças boas com doces e as más com pedaços de carvão. Ela diz: “Os verdadeiros milagres são aqueles que ninguém sabe quem fez, sejam eles os ínfimos portentos de espíritos secretos da casa ou os grandes prodígios que nos deixam realmente boquiabertos. Ainda tenho esse desejo infantil de encantos, sejam os pequenos ou grandes, e acredito neles”. Aqui está o segundo aspecto desse disfarce, mais curioso porque mais sútil. O “desejo um pouco neurótico por intangibilidade”, que a autora diz querer preservar com a escolha de ser Elena Ferrante pode ser entendido a partir do que aparece na sua escrita, o esforço de dar forma ao que resiste ao contorno e a ambivalência de suas personagens. Com o pseudônimo, a autora é, ao mesmo tempo, retalho e vestido, fragmento e todo. Todo esse fugidio, no entanto, que escapa e se configura a cada linha, composição e recomposição que exige, por sua vez, um trabalho do leitor. Assim como Lenuccia, a narradora da Série napolitana, tem que se conformar em nunca mais encontrar Lina após a amiga se mostrar com tanta clareza por meio de uma correspondência inesperada, cabe ao leitor se aquiescer com o enigma Elena Ferrante após a autora se revelar com tamanha honestidade nas cartas de Frantumaglia.

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Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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