Uma biografia pop

Nova edição de livro sobre vida e obra de Clarice Lispector segue repleta de equívocos defendidos por Benjamin Moser
Ilustração: Carolina Vigna
30/12/2017

Segundo Benjamin Moser, seu interesse por Clarice Lispector partiu do acaso. Quando ingressou na Universidade Brown, precisava estudar outra língua: “(…) estudar chinês era muito difícil. Mas eu tinha de fazer outro idioma e caí, totalmente por acaso, numa aula de português. E por aí foi. Eu não tinha nenhum outro motivo além de preencher minha grade de aulas. Eu tinha que estudar uma língua e foi essa. Deu no que deu”[i].

Diz ele que, quando leu A hora da estrela (1977), ficou tão entusiasmado que “queria fazer algo por aquela senhora, mas não imaginava como: tinha apenas 19 anos e via ali uma obra de nível mundial; e se as pessoas não sabiam disso, era culpa delas”.[ii]

Assim, pode-se supor que seu livro tenha nascido do fortuito e do impulso amoroso — que parece ser o maior problema da obra. Em inglês, saiu com o título Why this world — a biograph of Clarice Lispector (2009). Aqui, foi publicado[iii] pela Cosac Naify (2009), com o título de Clarice, uma biografia. [Na capa, leia-se apenas: “Clarice-vírgula”].

Com arrojado trabalho de divulgação e distribuição, a obra tornou-se lá e cá um best-seller, tomada até como biografia “definitiva” — o que certamente não é. Mas obra e autor ganharam notoriedade: “Clarice-virgula” ficou pop e levou novos leitores às obras de Lispector, o que foi muito bom.[iv]

A edição de 2017, herdada pela Companhia das Letras, é a mesma, acrescida de algumas fotos, porém quase nada é inédito para quem já viu a iconografia da autora.

Creio que nesta edição, o autor perdeu boa chance de ajustar problemas apontados na época pela crítica especializada ou não. Profícuo em entrevistas (em ótimo português), o autor até agora pareceu não se importar; ao contrário, ratifica seu método e seus “insights” como originais e visionários.

Tratando Lispector como ídolo, Moser afirma que, quando morreu, “Clarice (era), portadora de grande mistério, era uma figura mítica, ‘um ídolo extremo entre nós’; ‘uma mulher que fascinava os brasileiros’”. “Hoje, então”, prossegue, o biógrafo, “é vendida até em distribuidores automáticos de estações de metrô”.

A par da admiração e do gosto pelo majestoso — o que me parece de grande risco para qualquer biografia — as coisas não eram assim entre nós, brasileiros. A escritora era mais conhecida (dos anos 60 até a morte) em círculos intelectuais e universitários (sobretudo no Rio); suas obras não tinham grande tiragem, e havia (ainda há) quem achasse artificial seu vezo pelo mistério. Hoje, é mais lida, sim — Moser ajudou — e, tendo ido parar nas estantes, até navega pela internet em citações que nunca foram dela: seu nome valida até textos apócrifos.

É fato que Clarice ganhou maior visibilidade quando passou a escrever crônicas para o Jornal do Brasil (1967-1973). Então, leitores de jornal — não exatamente de seus livros — encontraram identificação; alguns lhe escreviam, cultivavam seus textos. Que eram ora criados para o jornal, ora apenas trechos de obras em processo de escrita, como aconteceu, por exemplo, com Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969) e Água viva (1973). Assim, sua “popularidade” veio aos poucos — e mais ainda depois das peças de teatro, monólogos e reverências trazidas pela cultura de massa.

Quando saiu, a biografia de Moser causou mal-estar na vida literária-acadêmica brasileira, exaurida de tanto pesquisar Lispector, que (verdade seja dita), virou moda nos anos 80-90, logo após sua morte. Houve extensos trabalhos interpretativos e biográficos sobre a escritora. O essencial era (e ainda é) a biografia de Nádia Battella Gotlib: Clarice, Uma vida que se conta, de 1995, depois complementada pela mesma autora por uma Fotobiografia de mais de 800 imagens em 2008. Além destas obras seminais, surgiram teses e pequenas biografias — nem sempre bem divulgadas ou editadas para um público amplo. Que pena pelos pesquisadores, que azar para editores.

Assim, o Brasil ficou com duas Clarices: a da vasta pesquisa acadêmico-científica; e a mais recente, pop e romanceada sob vertiginosas interpretações do biógrafo americano.

A questão não é enaltecer quem biografou antes, muito menos preferir o universo acadêmico ao mundo amplificado das mídias. Obviamente, cada biografia parte de um foco ou interesse específico. O de Moser (incontáveis são as entrevistas) sempre foi conhecer e “reconhecer-se” na autora por quem se apaixonou. A biografia de Nádia Gotlib desejou, como diz a autora, “entrelaçar vida e obra a partir da leitura crítica de textos e de dados biográficos, sem que equivocadamente se estabeleçam mútuas relações de dependência” (grifo meu).[v] 

Descontextualizar
No caso de Gotlib, deu certo trazer à biografia de Clarice sua ficção — com muito cuidado, “sem mútuas dependências”. Sabe-se que a autora organizou durantes anos seu material; no caso de Moser, a trilha estava aberta e documentada; ou seja, quase todos os caminhos levaram a dados e fontes. E, ao contrário de Gotlib, o biógrafo estabeleceu propositalmente relações de dependência entre vida e obra a partir de suas pré-convicções histórico-biográficas. Por isso, num percurso inverso, buscou e colou às suas ideias inúmeros trechos da autora.

Isso me parece método grave e perigoso: de tão apartados de seu complexo e do intrincado contexto, os excertos funcionam apenas como autenticação das ideias de Moser. Quer dizer, a escritora, na articulação de sua própria biografia, é usada para validar o que pensa o biógrafo. Um exemplo:

A alma exposta em sua obra é a alma de uma mulher só, mas dentro dela encontramos toda a gama da experiência humana. (…) Por ter escrito tanto de sua experiência íntima, ela podia ser convincentemente tudo para todo mundo, venerada por aqueles que encontravam em seu gênio expressivo um espelho da própria alma. Como ela disse, “eu sou vós mesmos”. (grifo meu)

Tal frase, retirada de Um sopro de vida, obra póstuma, mas escrita junto com A hora da estrela, é muito mais complexa do que o uso que se faz dela aqui. Não cabe análise neste momento, mas a obra donde Moser retirou a frase não quer, certamente, angariar leitores “espelhados na própria alma”, como sugere o biógrafo. Há distorções de leitura da obra.

Noutro trecho, falando sobre a cidade de Tchelchelnik, (Ucrânia), onde Lispector nasceu, Moser, como historiador que é, conta que os governantes poloneses da aldeia “possuíam haras que produziam cavalos valiosos (…), um ramo de negócios quase misteriosamente apropriado”. A seguir, pinça, sem pestanejar, outro trecho da escritora: “Eu diria: se pudesse ter escolhido queria ter nascido cavalo”.[vi] (grifo meu).

O leitor que deseja mais que fragmentos chega muitas vezes no limiar do nonsense. Comentando o famoso conto Uma galinha, Moser afirma que na frase “velho susto de sua espécie” está sugerido “o ancestral medo judaico de perseguição”. E na frase “resquícios da grande fuga” [da galinha, perseguida pelos telhados do bairro] remete à “desesperada fuga da Europa empreendida” pela mãe de Clarice. Tal apropriação simplória do texto literário ocorre na obra toda, e mina a confiança do leitor.

“Apud”: trilhando as trilhas
Além da descontextualização, Moser faz uso pouco ortodoxo das trilhas, como disse, já abertas por outros biógrafos. Aliás, bastariam as abundantes notas do autor para identificarmos as bases com que Moser montou seu livro.

Embora tenha feito também entrevistas com gente viva que conheceu Lispector, o biógrafo parece, não as ter enfrentado com maior prudência. Em vários casos, e na superfície, deu tais relatos como verdade. Um dos principais seria sobre o suposto estupro da mãe de Lispector, de que falo adiante. Além disso, incomoda muito a liberdade com que Moser cita depoimentos sem identificações: “um amigo disse…”, “uma amiga declarou…”.

No restante, o biógrafo acatou fontes e pesquisas já trazidas de outras obras. Delas, a biografia de Nádia Gotlib foi seu sustentáculo maior. (Nas notas, o livro de Gotlib é citado ao menos 55 vezes.) Ou seja, o biógrafo escolheu citar “apud”. O que é isso? Moser optou por trazer depoimentos, trechos, fatos, diretamente dos outros livros — e não de supostas fontes primárias e suas.

Para seu entusiasmado leitor, ok! Quem liga para isso? Do ponto de vista da pesquisa, a citação de segunda mão traz sempre mal-estar. Singelo exemplo: Quando intelectuais se reuniram para protestar contra a violência aos estudantes, diante do governador do Rio, Moser cita um comentário do jornalista Zuenir Ventura:

A essa altura, segundo o registro do jornalista Zuenir Ventura, que estava presente, Clarice Lispector quase desmaiou. Ela passara o tempo todo tensa, morrendo de medo de que…[vii] (Zuenir Ventura e Carlos Scliar, apud Gotlib, Clarice, uma vida que se conta, op. cit., apud )

Na obra de Nádia Gotlib, lemos o seguinte texto:

Zuenir Ventura conta que, nessa altura, “Clarice Lispector quase desmaiou. Ela passara o tempo todo tensa, morrendo de medo de que …[viii] (grifo meu)

Assim, em exercício facilitador, leio em Moser o que diz Zuenir, já citado por Nádia, etc. O mesmo ocorre com o uso de outras fontes importantes, como Esboço para um possível retrato, (1981) de Olga Borelli — companheira de Lispector nos seus últimos anos —, bem como outra biografia, Eu sou uma pergunta (1999), de Teresa Cristina Montero Ferreira.

Não posso falar em plágio, nem Moser nega ou esconde tais fontes. O problema é que a massa documental que compõe suas fontes é confortável demais para um biógrafo “definitivo”.

Alguns críticos já viram isso e foram incisivos. Benjamin Abdalla (2010) observa que títulos, subtítulos e mesmo a tonalidade são muito similares em Moser e Gotlib[ix]. Por sua vez, Vilma Arêas[x] (2012) sentencia:

Não gosto nada [da biografia do Moser]. O único dado novo que ele trouxe foi a história da mãe. Ele chupou muita coisa da Nádia Gotlib. Moser é sedutor, (…). É jovem, interessante, mora na Holanda, deve ter um ótimo agente. O livro é bem escrito, mas tudo o que ele interpretou da Clarice está errado.

Digressões e fofocas
Ainda assim, a biografia de Moser leva alguns leitores a nutrido prazer. Quem quer, lê a biografia de Clarice como um romance. Para ilustrá-lo, entretanto, Moser também cometeu excessos em digressões e fatos secundários. Não me refiro às amplificações histórico-políticas com que o historiador bem narra a perseguição e extermínio de judeus na Ucrânia, o que explica o consequente exílio da família Lispector no Brasil quando Clarice tinha apenas dois anos.

Refiro-me a informações supérfluas, totalmente alheias à constituição da biografia. Você, leitor, fica sabendo que Jânio Quadros quase violentou Clarice num evento, rasgando sua roupa — e que ela, assustada, foi chorar com a amiga Maria Bonomi. Saberá também, que a primeira dama (1967-1969), Yolanda da Costa e Silva, gostava muito de cirurgias plásticas e de desfilar com rapazes mais jovens. Saberá que Rubem Braga, nosso cronista, padeceu de grande amor por Bluma Wainer, com quem teve um rumoroso affair. Grande amiga de Clarice e mulher de Samuel Wainer (uma “judia da Bahia”, como diz o autor), Bluma morreu precocemente. Em seus incansáveis atributos a Lispector, Moser não as deixa de as comparar: “Bluma não era fotogênica e com seu narigão e seus dentes proeminentes dificilmente poderia ser considerada bonita”.

Ou então, desqualifica, diante de sua esfinge, o futuro marido diplomata: “O amor de Maury pela colega de escola de direito é temperado pela insegurança que a inteligência superior dela (de Clarice) lhe provoca”.

É grave um biógrafo não aplicar a sua obra o distanciamento crítico adequado, mesmo que traga consigo intensas convicções. Biografias, mais até do que obras ficcionais, dependem de um pacto com o leitor para gerar credibilidade.

A questão judaica
Como novidade, Moser defende a tese de que Clarice foi uma escritora judia (não brasileira nem cristã), que carregou na vida e na obra o peso do sofrimento de seu povo, de sua ancestralidade. A perseguição aos judeus da Ucrânia no século 20 teria sido essencial para constituir o que chama de “mistério” de Lispector. Seria interessante pensar na obra clariceana por esse viés. Mas o que seria promissor fica diluído na radicalização do biógrafo.

Explico: chegar a Alagoas aos dois anos, naturalizar-se brasileira, crescer em Maceió e Recife (em bairro de judeus), mudar-se para o Rio aos 14 anos, circular entre os mais expressivos escritores brasileiros, estudar direito — tudo o que, para nós, a constitui — seria para seu biógrafo um mero acaso[xi]: O Brasil não importa, e poderia ser qualquer outro país. A cena brasileira não teria ecoado. As mulheres de Clarice (de Joana, a primeira, a Macabéa, a última), seus contos, seus romances, até seus livros infantis carregariam consigo outras raízes, outras referências existenciais-político-ideológicas de quem nasceu “a milhares de quilômetros do Brasil, em meio a uma horripilante guerra civil, com a mãe condenada à morte por um ato de indizível violência…”. E a quem duvida, Moser insiste, enfático:

(…) o contexto que produziu Clarice era inimaginável para a maioria dos brasileiros — ao menos, certamente, para seus leitores de classe média.

Perceba-se que seu biógrafo, imponto tal dor ancestral à arte de Lispector, investe num perigoso determinismo que assola a força estética e morfológica de sua escrita. Trazendo “na alma” as marcas do sofrimento e do espírito hebreu de seus antepassados, a obra de Clarice seria, por força, o penhor dessa expiação. E ela a estrangeira, sempre.

E só a partir dessa perspectiva, comprovada por seus textos cheios de “enigmas” — que a biografia da escritora pode e deve ser compreendia. Ou seja, a ancestralidade é mais forte que quaisquer outras marcas criadoras, incluindo-se aí a visão antípoda e precursora de Antonio Candido sobre Lispector, quando a percebe em 1944 como um intenso sinal do novo na literatura brasileira:

[Perto do coração selvagem é] tentativa impressionante para levar nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito.[xii].

Moser abre mão de ver como esta escritora escolheu apostar numa escrita que, após os anos 40, teve a ousadia de dar as costas para o nosso regionalismo neonaturalista brasileiro e “escapar do ramerrão”. Para compreender Clarice Lispector, arrisco dizer, que se deve pensar muito menos na ancestralidade de seu povo e mais na literatura brasileira vigente à qual Clarice, em sua modernidade, e em bom português, dará vigorosamente as costas.

É muito difícil acatar a convicção radical desta obra, bem como esquecer as personagens de Clarice, ligadas a complexas questões do feminino e da feminilidade — e que seriam apenas alter egos da autora, como Moser nos propõe. Ora, Clarice também é Virginia Woolf, Katherine Mansfield e James Joyce.

Sob o risco da mera fantasia, tenho a impressão de que a própria Clarice insiste, com seu texto misturando-se ao de Moser, em negar a feição estrangeira que ele deseja mostrar. (Curioso: às vezes, ele próprio afirma o paradoxo).

1 “Uma vez esclarecida minha brasilidade…” (Clarice, em Moser, p. 10)

2 “A minha terra não me marcou em nada, a não ser pela herança sanguínea. Eu nunca pisei na Rússia”, disse Clarice Lispector. (Clarice, em Moser, p. 23)

3 “Nas fotos, ela parece tudo menos estrangeira.” (Moser, p. 21)

4 “Eu pertenço ao Brasil.” (Clarice, em Moser, p. 23)

5 “À vontade em casa, na praia de Copa, ostentava que o apego ao país era genuíno.” (Moser, p. 22)

6 “Sempre se indignou diante do fato de que havia quem relativizasse sua condição de brasileira, escreveu sua amiga mais próxima [Olga Borelli]. ‘Nascera na Rússia, é certo, mas aqui chegara aos dois meses de idade. Queria-se brasileira sob todos os aspectos. Eu enfim sou brasileira, ela declarou, pronto e ponto.” (Olga Borelli, apud Moser, p. 78)

A mãe
Sua mãe, também nascida na Ucrânia em época de guerra civil, teria sido uma das muitas vítimas da perseguição aos judeus. O autor toma não como hipótese, mas como verdade, que Mania Lispector teria sido violentada no decorrer dos pogroms. E, por isso, teria contraído sífilis, que anos depois a mataria, já no Brasil. A inconsistência que dá o fato como certo, tenta justificar-se num trecho bem conhecido em que a escritora, em crônica, diz que foi dada à luz (era a caçula de três irmãs) para tentar salvar a mãe de uma moléstia, como acreditavam os antigos. As certezas de Moser repelem a cautela:

“É difícil saber quando Mania foi atacada.”

“(…) doença antiga e muito temida, e é surpreendente que Mania e Pinhkas tivessem corrido o risco do sexo, para não falar da gravidez, sabendo que ela estava infectada.”

“(…) em temperaturas que atingiam trinta graus abaixo de zero, Chaya Pinkhasovna Lispector nasceu, de mãe sifilítica, em 10 de dezembro e 1920.”

Pobre Clarice, teria carregado o remorso de não ter salvado sua mãe. Contra esse diagnóstico interpretativo, alinho-me a muitas outras vozes: não há nenhum documento ou depoimento real e identificado que prove a hipótese do estupro, muito menos a sífilis. Por via das dúvidas, o bom senso ficou apenas em nota de rodapé:

Outras fontes atribuem a paralisia de Mania a um choque traumático (possivelmente um espancamento) ocasionado pela violência do pogrom ou outras doenças. Não se conhecem depoimentos das filhas de Mania, Tania Kaufmann e Elisa Lispector, que confirmem a hipótese de estupro.

A figura das mães e o peso da orfandade são de fato recorrentes em Lispector, desde o primeiro romance, Perto do coração selvagem, mas acusar Mania da irresponsabilidade de engravidar sifilítica seria no mínimo inverossímil.

Prosseguindo na tortuosa convicção, ao comentar A paixão segundo G. H., (e após lembrar que, em português “a palavra barata é feminina” — ?), Moser dirá:

Oculta sob a confrontação de G. H. com a barata agonizante está uma lembrança da mãe agonizante da própria Clarice Lispector. A identidade de sua mãe com a barata é um dos aspectos mais chocantes desse livro perturbador. No entanto, é difícil evitar a conclusão de que era isso o que Clarice pretendia: “Mãe, bendita sois entre as baratas”. (grifos meus)

Poucos estudiosos se dispuseram, antes de Moser, a pensar na presença do judaísmo em Clarice. Berta Waldman é uma delas, que lembra que Lispector em uma de suas últimas entrevistas diz: “Eu sou judia, você sabe, embora não acredite que o povo judeu seja o povo eleito por Deus. /…/ Eu enfim sou brasileira, pronto e ponto”.[xiii]

Waldman afirma a presença judaica, mas também reflete que, além do cristianismo e judaísmo, as crenças populares — como cartomantes — poderiam sugerir sua integração no peculiar sincretismo tão brasileiro.

a hora da estrela
Ao final, ao falar de A hora da estrela (1977), Moser afirma que nessa obra repousa o “caráter explicitamente judaico e explicitamente brasileiro”. Se o leitor esperava a conciliação redentora da pátria de Lispector, a explicação é frágil: a protagonista vem de Alagoas, onde Clarice passara a primeira infância. E o nome da famosa Macabéa vem do episódio bíblico do macabeus, tendo Judas Macabeu sido um dos maiores heróis da história judaica.

Aqui o biógrafo está cansado, limita-se a resumir a obra, deixando de lado a complexa relação entre a autora, o narrador interposto e a pobre nordestina. Deixará de lado também o agônico processo de escrita desta última obra em folhas soltas, catalogadas em envelopes por Olga Borelli. Mas essa é outra história. Que não vai dizer que Clarice e Macabéa têm a mesma história. Senão para que serve a ficção?

 

NOTAS

[i] Ana Rodrigues, Época Digital 17/5/2016. epoca.globo.com/vida/noticia/2016/05/benjamin-moser-clarice-lispector-e-eu-deciframos-um-ao-outro.html

[ii] idem

[iii] Em excelente tradução de José Geraldo Couto

 [v] Grifos meus. Gotlib, Nádia: Clarice, Uma vida que se conta, Ática, p. 15; ver também: Entrevista https://revistavidasecreta.wordpress.com/2016/02/06/nadia-battella-gotlib-duas-vezes-clarice/

[vi] Clarice Lispector Onde estivestes de noite, apud, Moser, p. 27

[vii] p. 358, grifo meu

[viii] p. 380, Gotlib, Nadia, 1995 Ática, grifo meu

[ix] (…) “Se no livro de Nádia Gotlib há um subcapítulo intitulado “As receitas da bruxa”, no de Moser há capítulo intitulado “A bruxa”. No [de Nádia] há “Os diálogos possíveis”, no de Moser há “Diálogos possíveis”. Em [Nádia] há “ o furacão Clarice”, [em Moser], “Furacão Clarice. (Revista de Estudos Avançados – USP, 24 (70), 2010.

[x] Suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco – suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/70-perfil/592-vilma-areas-nao-esquece-nunca-jamais.html/ 2012

[xi] Assim também entende Anna Cabalé, ensaísta professora da Universidade de Barcelona. (elpais.com/cultura/2017/09/21/babelia/1505996394_889013.html)

[xii] Crítica de 1944. No raiar de Clarice Lispector, em Vários Escritos, 1972.

[xiii] Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 5, n. 8, mar. 2011. ISSN: 1982-3053.

Clarice, uma biografia
Benjamin Moser
Trad.: José Geraldo Couto
Companhia das Letras
554 págs.
Benjamin Moser
É historiador, escritor e tradutor norte-americano; nasceu no Texas em 1976. Morou na França, mas voltou aos EUA para estudar História na Brown University. Hoje vive na Holanda, onde completou mestrado e doutorado. Escreve para o New York Revue of Books e para a revista Harper’s. Tornou-se conhecido nos EUA e no Brasil com a publicação de uma biografia de Clarice Lispector em 2009, Why this world, que entrou para o National Books Critics Circle Award dos EUA, aqui traduzido como Clarice,. Em 2016, reuniu num só volume todos os contos da escritora, Clarice Lispector, todos os contos. Também é autor de Autoimperialismo, três ensaios sobre o Brasil.
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

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