Rita Lee completa 70 anos em dezembro e tem seu lugar marcado como uma das maiores cantoras do Brasil. A história do rock nacional e a do Tropicalismo não podem ser contadas sem que se mencione seu nome. O último disco lançado por Rita, Reza, é de 2012, e já faz um tempo que ela encerrou a agenda de shows. No entanto, mesmo com um amplo legado estabelecido, a cantora não finalizou a produção artística nessa época. No ano passado, por exemplo, Rita Lee lançou uma autobiografia, grande sucesso editorial que ficou por muito tempo na lista de livros de não-ficção mais vendidos do país. Sim, o público teve interesse por conhecer melhor a intimidade dessa grande artista, mas não apenas isso: havia ali também uma habilidade para contar que atraía tanto quanto sua história.
A princípio, Rita Lee: uma autobiografia não foi bem recebido por uma parte da crítica, que a acusou de ignorar acontecimentos e personagens históricos relevantes para a sua carreira, e também por demonstrar um tanto de ressentimento com o passado. Nada fora do comum. Talvez o leitor não deva se prender a expectativas quanto ao que um artista escolhe revelar sobre si mesmo e sobre quem o cercou ao longo da vida. É necessário também dar atenção a outra faceta que a produção de Rita Lee revela: o talento para contar histórias.
Depois do sucesso, chegou-se a cogitar que a autobiografia seria a obra final de Rita Lee. Mas em 2017 ela apresentou ao público outro presente: a coletânea Dropz. São 61 contos curtos que mostram que a vontade de escrever não se esgotou no ano passado. A autora contou em entrevista que produziu Dropz em três meses, na esteira da inspiração que a autobiografia deixou.
No âmbito da ficção, Rita nos mostra que continua um tanto subversiva. É possível compreendê-la, a partir dos textos de Dropz, como observadora crítica da humanidade, da própria persona, da classe artística. Como autora, ela sabe ser mordaz, engraçada e, ao mesmo tempo, capaz de cutucar com força alguns equívocos ou vícios comportamentais que não ousamos questionar devidamente.
Escrita e desenho
Essa não é a primeira vez que Rita Lee escreve ficção. Esse caminho da sua veia criativa não pode ser considerado algo novo para ela. Rita também escreveu histórias infantis, além de ter um livro publicado com ilustrações de Laerte, Storyinhas, de 2013. A aproximação entre as palavras e o desenho já se manifestava ali.
Em Dropz, desenhos da própria autora encerram cada um dos contos. Um personagem principal, um objeto ou um gesto decisivo ganham espaço como ilustração. Os desenhos, com traços simples e bonitos, temperam um pouco mais a aura de humor. A capa do livro também é uma ilustração dela, um autorretrato da cantora caracterizada como palhaça. O desenho original é de 1997 e, segundo ela contou em entrevistas, foi um presente para o marido, Roberto de Carvalho.
Bicho e fábula
Quem conhece Rita Lee sabe da sua paixão por animais. Este livro também mostra a importância que eles têm para ela — inclusive, a obra é dedicada aos seus bichos de estimação. Eles são personagens importantes no livro, ajudam a contar algumas histórias. No conto Hã?, o segundo da coletânea, encontramos exemplos disso. A protagonista tem um gato como fiel escudeiro, até conversa com ele. Não só pela presença e importância desses animais na trama, mas pela narrativa, os textos de Rita se parecem um pouco com fábulas.
Mas o verdadeiro guardião era o gato preto Jasmim, que pulava de unhas e dentes em quem ousasse entrar na casa dela sem antes pedir permissão. Isso valia tanto para os pais quanto para visitas interesseiras e bisbilhoteiras. O gato e a menina eram unha e carne e sempre eram vistos juntos quando das visitas ao cemitério.
Ela usa do surrealismo e de um tom por vezes infantil para apresentar as histórias. Porém, no lugar das conclusões edificantes que as fábulas costumam trazer, os textos de Rita Lee deixam a “moral da história” em aberto. Mesmo assim, o leitor pode identificar certo contexto ao qual ela está se referindo. O estilo com que Rita conta as anedotas lembra muito a forma como a cantora costumava se comunicar no Twitter — com pequenos “causos” que deram origem a Storyinhas. O narrador de Dropz tem um quê de revolta e também de doçura. É alguém que enxerga os problemas do mundo mas não sabe se quer (ou se precisa) ajudar a resolvê-los.
Devia ter ficado em casa, pensou, mas daí não iria destilar seu veneno sobre aquelas pobres almas que ambicionavam tão pouco do mundo e se satisfaziam em suar e beber como porcos descontrolados mijando e vomitando nas calçadas, gente que se divertia apesar da catástrofe política do país, da pronográfica pobreza intelectual de seus comandantes e da insensibilidade espiritual de seus destinos.
Mas não é apenas nisso que está a riqueza do livro. É interessante notar como Rita Lee tem uma personalidade como escritora, um estilo bem marcado. Engraçada, ágil e simples, daquele jeito difícil de ser. E a música também está presente nos textos. Em Los Fantons, por exemplo, há uma homenagem bonita à cantora Carmem Miranda. Em outros contos, aparecem trechos de música, de Roberto e Erasmo a Raul Seixas, que se misturam à narrativa com um verso que se encaixa no enredo. Os contos trazem ainda referências importantes para a cantora, como o ator James Dean, em Final infeliz e Elvis Presley, em O Rei.
Como autora, ela sabe ser mordaz, engraçada e, ao mesmo tempo, capaz de cutucar com força alguns equívocos ou vícios comportamentais que não ousamos questionar devidamente.
La Cantante
Alguns personagens têm uma presença marcante. É o caso de La Cantante, que aparece mais de uma vez. É um instrumento usado pela autora para falar de uma artista em decadência, preocupada em pensar estratégias para se manter entre os holofotes da mídia. Embora o humor seja uma constante na obra, pois a escrita dinâmica e o pensamento rápido e inventivo dão esse tom, em relatos como as de La Cantante, a autora é um tanto trágica. Os bastidores do mundo artístico e sua relação com a mídia são assuntos bastante presentes em Dropz. É um tema que, com todos os problemas, ajuda a contar um pouco da história recente da construção de figuras famosas no imaginário brasileiro.
Sua carreira sempre fora marcada pela falta de personalidade, ora se declarando sambista, ora roqueira, ora axézeira, ora funkeira e em nenhuma delas conseguindo sobressair como a diva pop que imaginava ser, daí que não tinha ideia do que as pessoas pensavam sobre sua fama de eterna noviça do vício, aquela paraquedista que aterrissara de alegre no meio de uma aldeia de talentosos. Mas La Cantante não se dava por vencida e vivia puxando o saco de jornalistas e agitadores culturais, vendendo-se como a última e mais importante musa do panorama musical do país.
Ler Dropz é ter o prazer de conhecer a capacidade criativa de Rita Lee como autora, e reconhecer nesses contos muito simples algumas críticas ácidas de uma pensadora a pleno vapor.