Cartografia emocional

"Biografia involuntária dos amantes" é um romance sobre a possibilidade de se viver o desejo e o sonho
João Tordo, autor de “Biografia involuntária dos amantes’
30/11/2017

Um javali foi atropelado numa estrada em Pontevedra, Galizia, Espanha. O animal não sobrevive. Os dois homens que estavam no automóvel não sabem ao certo como aconteceu. Em um momento da conversa a estrada foi cortada por algo que bateu no carro. Um acidente, como tantos outros, menores ou maiores, que acontecem todos os dias e com uma série de consequências nas vidas de seus envolvidos.

A consequência maior da morte do javali é o que vai ser “desenredado” em Biografia involuntária dos amantes, de João Tordo. O romance tem como protagonista um professor de literatura de Salamanca, divorciado, com uma filha adolescente e solitário. Ele é o sujeito responsável por mapear e contar a vida de Saldaña Paris, um mexicano que aparece em Pontevedra como tocador de guitarra na praça central.

Saldaña Paris era poeta. Chegara à Europa havia muitos anos, entre idas e vindas ao México. Filho de um diplomata, ganhara ainda jovem um prêmio com seus primeiros poemas, apostara em Las Vegas e, multiplicado o valor, decidira viajar para a Europa. Vivera das mais variadas formas, enquanto o dinheiro lhe sustentava. Havia trabalhado como tradutor em Paris, atendente de bar em Barcelona e, por fim, escritor em Londres. Nesse tempo percorrido entre países, sua vida era um tanto de peripécias, de desencontros, de amores e rompimento acomodados em largas camadas entre poemas.

João Tordo pertence a uma geração recente de escritores portugueses, nomeada novíssima literatura portuguesa. Uma característica indissociável de sua escrita são as questões ligadas à melancolia, ao luto e tantas vezes ao processo de escrita ou à figura do escritor. Se em O paraíso segundo Lars D., temos um escritor de romances, deprimido e doente, em Biografia involuntária dos amantes há um poeta que procura as linhas principais de sua história.

Manuscrito
Contada in media res, a narrativa começa nos anos 2000 e retorna até meados da década de 1980. O que desencadeia a história de Saldaña é o pedido que ele faz ao narrador: que leia o manuscrito deixado pela esposa falecida. Ela o abandonara, sabia que havia morrido de câncer e que ocultava coisas de seu passado — que Saldaña não conseguira desvendar. O poeta se mostrava, aos poucos, um homem tremendamente melancólico, resignado à tristeza e à solidão. Os papéis de Teresa, deixados como herança ao marido, foram entregues por Benxamín Alvarez, bibliotecário da cidade onde ela havia passado seus últimos anos de vida.

No manuscrito não havia Saldaña. Havia um passado cheio de desejo, de uma adolescente que descobrira o amor pela juventude e a paixão pela maturidade. Do primeiro namorado, Jaime, ela havia pulado ao tio Franquelim, irmão do pai fugitivo e alcoólatra. Franquelim era contrabandista, violento e destruíra o que havia de saudável na cabeça de Teresa. A loucura que não era contada no manuscrito seria revelada depois por Antonia, amiga de Saldaña em Londres, onde ele havia vivido com Teresa.

Entre as histórias de Saldaña está também a vida do narrador (sem nome): divorciado, com um relacionamento estremecido com a filha e a ex-mulher, ele se reordena e decide investigar a história de Teresa, depois que o amigo tentara se mutilar, por saber que no manuscrito ele não aparecia em momento algum e talvez não tivesse nenhuma importância na vida de Teresa. A investigação que empreende lhe mostra um universo de lembranças e mentiras muito maior do que as linhas do texto deixado por Teresa. De Benxamín, na Galizia, ele parte para Londres, Canadá e Lisboa, cidade de origem de Teresa. Remonta seu passado, encontra pessoas que viveram a sua história, como Antonia, de Londres, Luís Stockman, no Canadá, e o próprio Franquelim, que estava preso por estupro e assassinato no Canadá e fora extraditado para Lisboa. A complexa Teresa idealizada por Saldaña era outra mulher: em Londres enlouquecera, quase matara o marido, fazia telefonemas demorados e envoltos em mistério, era violenta e descontrolada.

Os diálogos de Saldaña e do narrador, além das memórias do poeta, recorrem à arte, à literatura e convergem na ideia da beleza, da literatura como espaço para confissão, desapego ou entendimento. Falam de O retrato de Dorian Gray e a idealização da beleza e do gênio, que nenhum dos dois podia ser uma tirania. Assim como amor e ausência de conhecimento sobre Teresa haviam sido para o poeta. E há a solidão de Hopper, de figuras que olham o mundo como se não se encaixassem nele.

A recuperação do amigo, a descoberta da verdadeira história de Teresa e também do próprio Saldaña, contada pelo pai, enquanto o filho se restabelecia no hospital na Espanha — um sujeito tomado pela poesia e pelo amor, que desejava viver intensamente sem se prender a nada —, levam o narrador a reconhecer-se também. Trata de fazer as pazes com a filha, depois de um afastamento silencioso e retoma ou reorganiza sua vida. A vida e o sentido das coisas eram uma incógnita, um sonho — “(…) a tal sístole poderosa que nos esmaga e depois nos dispara em todas as direções até aos confins do espaço”.

Biografia involuntária dos amantes é um romance sobre a capacidade ou a incapacidade de viver o desejo e o sonho. “Dedica-te a amar as coisas certas em vez das erradas”, diz Julia Montel — uma outra personagem — ao narrador, porque ele era um melancólico e cultivava uma solidão imensa. Saldaña dividira o tempo da sua existência até então, a amar coisas certas e erradas: a poesia, Teresa e a liberdade. É uma narrativa sobre a obsessão: com determinada pessoa no caso de Teresa, com a poesia e a autodeterminação de Saldaña e a solução de uma intriga que demove o narrador pela história do amigo mexicano.

“Às vezes, as palavras ajudam-nos. Não servem apenas para destruir; podem ter uma função criadora, podem resolver alguns de nossos dilemas”, aponta o romancista Jaime Toledo, umas das personagens da vida de Teresa. E é isso que Biografia involuntária dos amantes é: uma cartografia emocional (de palavras) que leva o leitor a pontos diferentes no tempo e no espaço, conjugando memórias, refletindo sobre o fazer literário e o lugar do poeta, que experimenta e depois usa o material do cotidiano para escrever os poemas. João Tordo evoca o grande poder da epifania poética, da mentira e seus desastres (o manuscrito) — destruidor e reorganizador — e da grande possibilidade que é a amizade.

Biografia involuntária dos amantes
João Tordo
Companhia das Letras
369 págs.
João Tordo
Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1975. É licenciado em Filosofia. Estudou escrita criativa em Londres e Nova York. É autor, entre outros, dos romances O livro dos homens sem luz (2004), O bom inverno (2010), A anatomia dos mártires (2011), O paraíso segundo Lars D. (2015) e O deslumbre de Cecília Fluss (2017). Recebeu os prêmios Jovens Escritores, José Saramago e Fernando Namora.
Gabriela Silva

Graduada em Letras, licenciatura plena em língua portuguesa, literaturas de língua portuguesa e Especialista em “Leitura: Teoria e Prática” pela Fapa; Especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Doutora em Teoria da Literatura.

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