Filho de gaúchos, Daniel Galera nasceu em São Paulo (SP), em 1979, mas vive há muitos anos em Porto Alegre (RS). Ali, foi um dos criadores da lendária editora Livros do Mal, por onde lançou seu livro de estreia, Dentes guardados (2001), e a primeira edição de Até o dia em que o cão morreu (2003), adaptado para o cinema por Beto Brant e Renato Ciasca como Cão sem dono (2007). Tradutor e romancista, é autor de Mãos de cavalo (2006), Cordilheira (2008, prêmio Machado de Assis de Romance, da Fundação Biblioteca Nacional), e Barba ensopada de sangue (2012). Sua obra está traduzida na Inglaterra, Estados Unidos, França, Itália, Argentina, Portugal, Romênia e Holanda.
• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Eu experimentava escrever contos desde o ensino médio, levando muito a sério as propostas de redação, mas acho que o acontecimento que definiu minha escolha pela escrita foi o primeiro acesso à web, lá por 1996. Publicar na internet foi o primeiro passo. As oficinas de escrita da faculdade de comunicação me deram a confiança que faltava.
• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Acho que minha única mania é ficar mexendo na fonte e diagramação do texto enquanto trabalho, como se isso pudesse me ajudar.
• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Procuro combinar ficção e não-ficção. Filosofia e ciência alargam os limites da imaginação. Tenho uma inclinação por autores pessimistas, são esteticamente revigorantes, mesmo quando não concordo com o que dizem. Schopenhauer na cabeceira ajuda a ter um sono tranquilo.
• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Michel Temer, qual seria?
Breviário de decomposição, de E. M. Cioran.
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Escrever é a parte fácil, uma mesa, um notebook e duas horas de sossego diário resolvem. Mais difícil é preservar o tempo da introspecção, que é um tempo paralelo ao do cotidiano. Uma tática que funcionava pra mim era andar de ônibus, sentar ao lado da janela e deixar ele percorrer uma volta completa na linha.
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Ao lado de uma pessoa amada que também lê silenciosamente por longos períodos.
• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Ler pelo menos uma hora e escrever pelo menos uma página.
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
As minhas etapas favoritas são as revisões. A revisão do primeiro manuscrito completo, depois a revisão do trabalho dos editores, revisores e preparadores de texto. Cuidar dos detalhes, perceber a lógica interna do texto funcionando, ou descobrir que ainda há problemas e se dedicar a eles.
• Qual o maior inimigo de um escritor?
Os dois extremos da vaidade. Sem ela, não se cria nada que preste, mas o excesso dela nos transforma em idiotas.
• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Entrevistas em vídeo. Idealismos. Autores que se dedicam a fabricar a recepção da própria obra. Fonte sem serifa.
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Edyr Augusto, cujo alucinante Pssica passou batido pelas premiações, se bem me lembro.
• Um livro imprescindível e um descartável.
Acho imprescindível ler Donna Haraway, que infelizmente não teve quase nada traduzido no Brasil. A visão de mundo dessa mulher me fornece boa parte da esperança que ainda tenho na humanidade. Descartável é o Facebook.
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A sensação de que o livro se passa no mundo encantado dos Ursinhos Carinhosos.
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Os Beatles. Tudo tem limite.
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Uma vez fui ao banheiro de um posto de gasolina e encontrei um papelzinho com um número de telefone anotado boiando na água da privada. Na mesma época, alguém havia pregado dúzias de placas de metal nos postes de Porto Alegre, contendo um número de telefone e a mensagem “Conserta-se gaitas”, e uma lenda urbana dizia tratar-se de uma clínica de aborto clandestina. Juntei as duas coisas num conto.
• Quando a inspiração não vem…
Uma boa parte do trabalho consiste em ficar olhando a tela, faz parte.
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Daniel Pellizzari. Mas em geral optamos por churrascarias.
• O que é um bom leitor?
Aquele disposto a lidar com a estranheza e o desconforto, e que parte do princípio de que o texto lhe reserva prazeres e sentidos ocultos que se revelarão parcialmente e aos poucos. Se o escritor frustrar esse leitor, é porque realmente mereceu.
• O que te dá medo?
A bomba populacional.
• O que te faz feliz?
Ver meu cachorro dormindo de barriga pra cima.
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Tenho certeza de que existe apenas esse mundo, por mais que nosso acesso sensorial e intelectual a ele seja limitado. O resto é dúvida. Mas é justamente por isso que escrever é tão legal.
• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Ser sincero comigo mesmo pra conseguir ser sincero com o leitor. Ser sincero por vias tortas. Ser sincero de uma maneira que encante, que provoque algum prazer ou perturbação estética. Afetar o leitor sem cair na tentação de ir de encontro às suas expectativas.
• A literatura tem alguma obrigação?
Não.
• Qual o limite da ficção?
Em tese nenhum, é até desejável que ela trabalhe fora dos limites do que é apropriado, aceito e compreendido em outros contextos. Mas todo autor tem responsabilidade pelo que expressa.
• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Louie C. K.
• O que você espera da eternidade?
Mais um dia.