Quais caminhos segue a nova literatura brasileira? A pergunta, de escassas respostas, vem inquietando seminários, mesas de festas literárias e outros tantos recantos do gênero. A dificuldade em apontar certezas se deve, creio, à intensa diversidade temática e rítmica praticada por nossos prosadores. A distância entre Milton Hatoum, Cristovão Tezza e Alberto Mussa, para ficarmos em apenas três exemplos, não pode ser medida em linhas geográficas. Ela se mensura pela sensibilidade, pelas inquietações, pelas provocações. E aí caímos no campo da diversidade. A boa nova, posto que não temos uma escola literária moderna e coesa, é que consagramos a satisfação plena dos mais diversos leitores.
Pondo mais lenha nesta imensa fogueira surge Olhos de carvão, livro de contos de Afonso Borges. Ele, a rigor não se alinha a nenhuma das tantas correntes em voga, embora apanhe o cosmopolitismo de um Sergio Vidal Porto e o revisita com um pouco da poética cáustica à Evandro Affonso Ferreira, afinal ninguém pode ficar isolado diante deste imenso e policromático turbilhão. E vai além ao manipular vários temas, várias sentimentalidades. Em outras palavras, ao não se afinar com uma única corrente termina por dialogar com todas. E isso certamente é fruto de suas intensas leituras da vida.
Estamos assim diante de um impasse. Trabalhar em todas as frentes, atirar em variados alvos, pode ser uma agressão ao ensinamento de Antônio Carlos Viana, um mestre do conto, que acreditava carecer de unidade um livro de narrativas curtas, sobretudo de unidade temática. E somente assim tal obra pode existir como arte. Já na orelha de Olhos de carvão, Alberto Mussa se dispõe a resolver a equação: “Não há um tema comum: o que lhes dá unidade é a persistência de um mesmo tom e um mesmo ritmo”.
Então vamos à questão do ritmo, do tom. Os textos curtos, breves, criam uma dinâmica atual, deixando quase sempre ao leitor a função de complementar as intenções do autor. Não que deixe nada na obscuridade, mas certamente pede a parceria do leitor que precisa ler também as entrelinhas para saber o exato sentido de cada narrativa. E ainda há um halo de poesia, já se disse, que exige um raciocínio metafórico. Ou seja, embora se faça como livro de fácil e agradável leitura, pede atenção e respeito.
Sentimentos
Muitos dos enredos, desenvolvidos com aparente vagar, solidifica a intenção de criar uma literatura feita de sentimentos, mais que de verdades incontestáveis. Um escritor ganha o Nobel, mas só consegue rememorar os horrores de um campo de concentração nazista. Um homem, diante de um sinal fechado, lembra o amor perdido na adolescência. Um hippie extemporâneo corre o sertão mineiro com saudades do mar. São histórias que vão de Tel Aviv a São João de Miriti, revestidas pelos símbolos da modernidade e, destarte, acentuam o cosmopolitismo do autor, ou pelo menos desta sua obra.
E como obra contemporânea, conta de tragédias urbanas. Solidão, abandono, explosões de bombas, falsos flagrantes, indiferenças. Mesmo quando se perde no sertão de Minas, são as réstias urbanas que ali resistem que encantam o autor. Esta é outra aproximação visível com o universo literário moderno, pois não despreza o mundo rural, apenas constata sua condição quase arcaica, situação que, parece, já não oferece tantos ganchos dramáticos para gerar uma literatura mais sólida e forte.
Também é daí, desta vontade de falar do mundo atual, que Afonso Borges recorre a referências literárias e cinematográficas. Autores e filmes se sucedem nas narrativas: Maurice Druon, Bartolomeu Campos de Queirós, Rio 40 graus, Murilo Rubião, Guimarães Rosa. O curioso é que estas referências são sutis, algumas mesmo surgem como personagens, o que despe a narrativa de qualquer pretensão erudita. Tudo no volume se faz numa espécie de vida real — como ela é, diria Nelson Rodrigues. E daí alguns contos se realizam como crônicas, como narrativas cotidianas, ocasionais, mas quem se aprofundar nas entrelinhas, verá ali muito mais que o mero cotidiano. É um recorte de vida que surpreende, nocauteia com suas surpresas, seu inusitado.
Uma curiosidade vem do incomum dos títulos, quase versos, quase sentenças líricas: Uma aura índigo serena as rochas de Göreme, As juras na igreja, as bombas, o sinal fechado, Na divisa, os olhos de carvão em Celeste, A vodca, os olhos azuis e o poema, enlouquecido, Sem pensar, o féretro, depois de tantos anos.
Também os títulos dos contos fazem parte de um objetivo, talvez involuntário, de resgatar uma linguagem poética que se derrama mesmo falando de tragédias.
Centenas de anos depois, crianças visitam as igrejas de Göreme. Poucos conhecem a história de Mjaes. Ela corre na boca do vento, em segredo de família, entre as vielas das cidades subterrâneas da Turquia. Ninguém se lembra do sangue nem das cabeças decepadas. A história se tornou lenda e nas paredes vulcânicas se eternizaram.
O que se vê, enfim, na leitura de Olhos de carvão é uma escrita de maturidade. Afonso Borges preferiu o tempo certo para se aventurar na prosa literária, depois de ter experimentado a poesia e o discurso infantil. Isso faz de seu livro um trabalho marcado pela seriedade. Inusitado nos enredos, poético na escrita, surpreendente na forma. Um livro que surge como um fôlego renovador para nossa literatura.