O traço de uma geração

A ótima biografia de Henfil escancara o machismo da sociedade brasileira nos anos 70 e 80
Henfil por Ramon Muniz
31/10/2017

Desde que encontrei Diretas já (1984) na estante de um sebo, lá por volta de 2005, Henfil se tornou um ícone para mim. Virei fã. Suas charges geniais unidas ao fato de ele ter lutado tão ferrenhamente contra a ditadura militar o colocaram num lugar de prestígio em meu imaginário seleto de heróis.

Acontece que, depois de ler O rebelde do traço, biografia do chargista escrita pelo jornalista Dênis de Moraes, precisei tirá-lo de lá e inseri-lo no meu rol de mortais imperfeitos — ainda que, claro, em meio aos mais notáveis.

O livro publicado pela primeira vez em 1997 e reeditado no ano passado pela José Olympio não apenas traz à tona alguns equívocos políticos de Henrique de Souza Filho como também nos apresenta a dimensão das limitações da esquerda de seu tempo, que, embora desse o sangue pela liberdade, ignorava questões importantes, como o machismo e a homofobia, temas que só ganhariam ampla repercussão no Brasil 50 anos depois, com a ascensão da internet.

O mesmo cenário se aplicava às redações de jornais majoritariamente masculinas. Ao falar dos veículos pelos quais Henfil passou, o biógrafo menciona apenas homens — um exemplo da supremacia deles à frente da mídia brasileira em meados do século passado.

É nesse contexto que o humor como o de Henfil e o jornalismo como o da imprensa de oposição da época não hesitavam em muitas vezes usar trocadilhos machistas e/ou homofóbicos para questionar a desigualdade econômica brasileira. Ou lançar mão de manchetes triviais como Henfil dá um trato em Bruna (Lombardi) (o texto era do intelectual Pasquim — e não de uma revista de fofoca), sem que isso fosse questionado.

E não que ninguém soubesse o que era feminismo. Mas a queima dos sutiãs nos anos 1960 parecia não surtir muito impacto entre os grandes figurões da esquerda por aqui — lembrando que não era assim só no Brasil. E, para a minha decepção, não raro, Henfil, o genial e politizado chargista mineiro de Ribeirão das Neves, foi uma amostra nítida dessa displicência, chegando a brincar com o problema do machismo — tratando muitas vezes o assunto como uma causa menor.

Conforme conta a biografia, no início da década de 1980, quando a jornalista Marília Gabriela foi convidada para apresentar o programa feminista TV Mulher, referência da televisão matutina que discutia importantes pontos da emancipação feminina — ainda que sob uma perspectiva liberal e ancorada ao capitalismo — perpassando temas como orgasmo, menstruação e aborto, Henfil lançou o TV Homem, pouco depois de uma entrevista que deu no programa de Marília na TV Globo.

Na ocasião, o já então famoso cartunista chegou a dizer: “A situação de vocês, mulheres, é muito melhor do que a dos homens. A libertação da mulher é uma coisa que não tem volta. A mulher já está consciente, procura entender e afastar o machismo. O homem ainda não pode fazer isso. Nesse exato momento, ele é o mais frágil do universo. Os homens estão precisando de ajuda”.

Ainda segundo a biografia, em TV Homem, Henfil “apelou aos homens do planeta que cerrassem fileiras no ‘movimento homista, vanguarda da nossa luta de libertação”. Ensinou ‘regras práticas da atividade doméstica’, para que marmanjos fossem se acostumando a assumir o ônus da emancipação”. Sim, ônus. O ônus da emancipação. E quem tão “bem humoradamente” registra essa perspectiva é o biógrafo.

Como uma densa obra documental, fruto de uma imensa pesquisa, O rebelde do traço é um trabalho jornalístico e tanto. Mas como obra jornalística que é, carrega traços de uma parcialidade saudável que apenas questiono por, em pleno século 21, reproduzir e reforçar paradigmas de outros tempos — da velha esquerda machista, do velho jornalismo machista, e atravessar questões de gênero importantes sem se ater a elas.

Este posicionamento aparece sob duas maneiras: no texto e na forma de encadear os fatos. Por exemplo, Henfil era pai e, depois de se separar da primeira esposa, Gilda Cosenza, mãe de seu menino, é apresentado como figura independente.

O biógrafo conta detalhes de vários relacionamentos amorosos e viagens do mineiro depois da primeira separação, mas menciona muito pouco sobre sua relação com o filho. Reforça-se assim a ideia de que o filho é sempre mais da mãe que do pai — este, por sua vez, solto no mundo.

Outro ponto que não se problematiza (problematizar é um termo bem recente — talvez partir dele seja um bom começo para revisar uma biografia lançada em 1997) é o relacionamento de Henfil, na casa dos 30, com Lúcia Lara, uma adolescente 20 anos mais nova. Tinha apenas 15 anos (em entrevista para o documentário Henfil plural, exibido pela TV Cultura, a jovem diz ter 14 anos quando conheceu o chargista — ainda mais menina).

No que tange ao discurso, não são poucas as vezes em que o biógrafo pisa na bola com jargões machistas. Um exemplo disso é quando, ao narrar a união entre Henfil e Lúcia, ele acentua o estereótipo do “homem gavião” dizendo “O sultão, em estado de graça, decretou a dissolução do harém. Parou em Lúcia”.

Tudo a seu tempo
Enxergo isso de um mirante onde temos plena liberdade de expressão. Onde nós, mulheres, ocupamos mais da metade das redações dos jornais — embora ainda nem tenhamos chegado perto da paridade salarial. Peso uma biografia escrita há exatos 20 anos, de uma personalidade que morreu há quase 30 anos, com a balança de um tempo no qual em um piscar de olhos um breve texto na internet pode render uma manifestação na praça.

É tudo muito rápido, é tudo muito novo. Mas isso não dispensa a necessidade de uma crítica adequada ao nosso momento para que avancemos na politização. E conta muito politizar uma biografia. Não seria a primeira vez na história que o pessoal teria também seu caráter político. As mulheres que o digam.

Pontos fortes
Não sei dizer se era demasiada miopia política daquele tempo não entender que lutas como a de gênero não deveriam ser secundarizadas no confronto a uma ditadura carrasca. Mas de uma coisa não dá para discordar, Henfil, apesar não avançar em questões sociais que hoje reivindicamos (fato que atribuo em grande parte a uma limitação histórica, afinal, era outro período), merece ser lembrado por toda a sua ampla e genial obra em traço, filme e televisão.

Pela sua força em resistir à cesura da imprensa e, depois, à censura patronal dos grandes jornais. Por inventar o Diretas Já que até hoje estrutura nosso velho desejo por uma democracia coerente. Por sonhar com o PT, quando o partido representava uma saída otimista frente a um governo impiedoso e uma esquerda de pouco apelo popular. Pela sua busca por justiça desde a adolescência, quando, seguindo os passos do irmão, se lançou às causas da esquerda católica que crescia no Brasil.

Por sua batalha contra a hemofilia e seu empenho por mais segurança nas transfusões de sangue. Por não ter medo de enterrar a mornidão de ideais em seu Cemitério dos mortos-vivos, série que denunciava celebridades marcadas de alguma forma pelo que o biógrafo descreve como “cumplicidades, falhas de caráter, oportunismos e desvios ideológicos”.

No sentido de mostrar toda essa importância de Henfil, Dênis de Moraes foi impecável. Entrevistou dezenas de políticos (mas não só políticos), pesquisou vários arquivos e imprimiu numa obra completa e bem escrita — o texto é bom, flui com simplicidade, à altura de um jornalista do cacife de Dênis de Moraes — o legado de um homem que passou a vida lutando por um Brasil mais justo e atravessa gerações como símbolo de força inspirando lutas ainda hoje.

Em uma época caótica como a nossa, em que vemos desabar tudo o que o país buscou ao fim da década perdida, o patrimônio político deixado por Henfil é muito mais do que bem-vindo. E sua biografia também — embora mereça ser revista.

O rebelde do traço
Dênis de Moraes
José Olympio
392 págs.
Dênis de Moraes
Nasceu em 1954 no Rio de Janeiro (RJ). Jornalista, escritor e professor universitário, publicou mais de 30 livros, entre eles O velho Graça, uma biografia de Graciliano Ramos (2012) e O rebelde do traço, a vida de Henfil, relançado no ano passado pela José Olympio. É doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, de Buenos Aires.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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