Como é que a gente começa um romance? A frase, um tanto provocativa, um tanto ingênua, aparece no começo do meu romance Sinfonia para vagabundos, de 1992, publicado pela Bagaço, do Recife. Na verdade, um metaromance, que pretende contar a história dos boêmios Natalício, Professor e Virgínia pelas ruas da cidade, em companhia de bêbados, músicos, menores abandonados, mendigos.
Naquele instante, minha oficina de criação literária estava completando dez anos e eu me sentia na obrigação de escrever um trabalho em que revelasse minhas preocupações com a arte do romance, sobretudo para alimentar a inquietação dos meus alunos. Era uma espécie de preparação para Os segredos da ficção, livro que reúne meus ensaios sobre a criação literária e que provocou muitos ruídos entre leitores, professores e críticos.
Nunca entendi esses ruídos, as inquietações e até os insultos. Era muito grande e surpreendente o número de pessoas que julgavam desnecessário o debate e o estudo sobre a criação literária. Lembro-me ainda criança, quando comecei a ler em Salgueiro, no sertão de Pernambuco, embaixo do balcão da loja do meu pai, me perguntava a todo instante: por que as pessoas gostam tanto de escrever? Por que escrever? Por que fazer livros? Como os livros são feitos? O que representa uma palavra? O que a palavra faz na frase? Um mundo de perguntas me preocupando…
Como uma pessoa pode escrever romances e não fazer perguntas? Claro, cada um escreve, pensa e vive a seu modo. Segundo as suas normas e intuições. Mas mesmo as intuições pedem um mínimo de atenção. Tanto é verdade que estabeleço quatro movimentos para a criação literária: a) Impulso, b) Intuição, c) Técnica e d) Pulsação narrativa. Quando escrevemos, podemos intuitivamente perceber o que está bem ou mal escrito. Mas se a intuição adverte, o que a técnica sugere? Voltam, portanto, as perguntas, mesmo considerando-se que a melhor oficina de criação ainda é a leitura.
Pois bem, já disse que comecei Sinfonia com uma pergunta: Como é que a gente escreve um romance? Não era apenas a primeira frase, mas aqueles movimentos que intrigam o leitor. Tratei de examinar o começo de alguns livros importantes; por um equívoco injustificável, deixei de citar Cem anos de solidão. Vamos ver, então, o que dizem os consagrados:
Graham Greene, em O crepúsculo de um romance:
Uma história não tem princípio nem fim: Alguém escolhe um determinado momento vivido e dele parte numa recapitulação ou narrativa. Digo “alguém escolhe”, com o impreciso orgulho de um autor profissional que, mesmo tendo sido especialmente notado, recebeu elogios pela sua habilidade técnica. Mas serei eu realmente quem escolheu aquela escura e úmida espessa cortina de chuva de 1946, com a visão de Henry Milles atravessando obliquamente uma espessa cortina de chuva, ou serei eu o escolhido por estas imagens? De acordo com meu código de ofício, é convincente e certo começar aí, mas se naquela época eu acreditasse em algum Deus, acreditaria também em sua mão invisível, conduzindo-me e sugerindo: “Fale com ele, ele ainda não o viu”.
O seria melhor seguir Graciliano Ramos?
Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão de trabalho. Dirigi-me a alguns amigos e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi a Arquimedes a composição gráfica; para a composição literária, convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história elementos de agricultura e pecuária; faria as despesas e poria meu nome na capa.
Como se percebe, para escrever uma história não basta apenas juntar palavras. Verificamos em Graham, que é preciso, inicialmente, inventar um cenário — aquela escura e espessa cortina de chuva — e, dentro dele colocar uma cena, o que se realiza a partir do personagem que nasce, a princípio inominado para depois chamar-se Henry Davis. Mas isso é técnica — de acordo com meu código de ofício? — ou Inspiração? — se eu acreditasse em um Deus, acreditaria em sua mão invisível. E depois comece a revelar o personagem — fale com ele.
De acordo com Graham Greene, o romance nasce assim e agora espera pelo nosso trabalho; pelo nosso empenho. Que é grande, muito grande, basta ouvir — ou ler — Graciliano Ramos, como já vimos. É preciso arregimentar forças ou qualidades em vários níveis, observando, por exemplo, texto: pontuação, ortografia, sintaxe, para a composição literária. Um esforço claro, objetivo e consciente.
Para definir o personagem, o escritor dispõe, ainda, de três perfis: físico, psicológico e físico-psicológico, que podem ser estudados no meu livro A preparação do escritor.
Ainda em Sinfonia para vagabundos, apresento o perfil físico-psicológico do Professor:
Porte médio, raros cabelos brancos, rosto vincado, sem barba, pescoço largo a separar o pescoço do coro, como se ambos quisessem manter distância. Óculos de aro de ouro e lentes grossas, magro, calça azul e camisa branca muito limpa, Engomadas. Ar grave. Solene.
As pernas cruzadas, dedos finos, unhas aparadas, queixo firme de quem sabe em que direção caminha apesar das curvas e dos atalhos, tropeçando nos próprios sapatos.