A notícia me atinge, nesta segunda-feira (dia 10 de julho de 2017), como um murro grosso, brutal, da PM paulista. Talvez ainda como um tiro, mas não de bala de borracha, não de nada de plástico na realidade nada plástica na qual estamos vivendo, agora, num Brasil desconhecido, despertado para o ódio — um Brasil que devia fazer mal, muito mal, principalmente à Elvira.
Olha, isso é muito ruim: perder uma escritora do porte de Elvira Vigna, justo quando começava a quebrar o “muro” que levantaram em torno dela, o cerrado muro das lamentações dos medíocres que não suportam ver uma pessoa viva, muito viva, na inteligência e na bondade — irônica — que queria até nos salvar (?) pela Literatura, ainda.
A literatura brasileira está bem?
Não, ela não está bem. Vamos por partes, Estripador, e retrospectivamente, se me permitem.
Nós começamos nas alturas. Não estou falando de Zé de Alencar (“mais importante do que Joyce” — conforme ensinado em aula armorial, pelo professor Ariano Armorial Vilar Suassuna), porque a nossa literatura realmente se inaugura — quanto à relevância capaz de antecipar parte da modernidade pelo menos literária — com um mulato chamado Machado de Assis (Joaquim Nabuco pedia que se evitasse referir-se a Machado pela cor da pele que, para ele, o “Belo Quincas” do Pernambuco da Casa-Grande, era “como se fosse branca”, olha só incrível como podemos ser racistas e “abolicionista” ao mesmo tempo! Bem, retomando o fio de meada: a gente deveria ter podido manter o rumo dado por Machado nesse começo, tão magnífico, pela mão tisnada de um mulato, de um mulato-mulato (sim, ó Nabuco das alvuras das Sinhazinhas brincando “upa-upa-cavalinho!” no lombo das negrinhas descalças)…
Foi Assis o nosso santo a benzer talvez até de ressentimentos inconfessáveis a literatura apenas engatinhando no trópico onde as filhas dos portugueses se abanavam entre as pernas, quando ninguém estava olhando (e, uma vez ou outra, talvez quando havia alguém olhando sim, ó “Capitolina” imortal do negão Machado).
Estou tentando falar do berço de ouro (Machado) de nossas letras douradas bordadas sobre as poltronas acadêmicas ou sobre as espreguiçadeiras modernosas do que às vezes se pretende passar por crítica “antiacadêmica”.
O pontapé inicial do grande romance brasileiro foi dado, auspiciosamente, por um gênio moderno como poucas literaturas tiveram, no início de um primeiro tempo. Assis, o goleador, o goleiro e o gandula ao mesmo tempo, é a divindade tutelar do game “Literatura” — jogo que ainda não terminou, enquanto aqui estamos ainda consultando bússolas adoidadas, nas quais o “Norte” e o “Sul” que ele traçou estão apagados daquela boa medida flaubertiana desenhada com compasso que traça, no ar, o arabesco abstrato de um Stendhal que tivesse o vigor extraordinário de um Sterne viajando de Matacavalos para o centro do Rio de tinta que se apaga.
Se eu fosse professor de Estética ou de Literatura, começaria por ensinar esse pentiment aos alunos — e a sorte grande de ter tido Machado na base do traçado, de pés descalços e mão enluvada, no começo de tudo. Nunca admiraremos o suficiente o “homem-de-cor” que nos legou a herança da prosa-pena da época (não da sua poesia pesada) como quem abandona um guardanapo usado, num fim de tarde onde foi servido chá de grandeza, em verdes terraços.
Pois muito bem. Estávamos falando da sorte grande que se perdeu num cassino, ou do jogo de azar do Brasil perdulário que foi, pouco a pouco, perdendo o rumo dado pelos aéreos (no melhor sentido) instrumentos machadianos, com a alta qualidade prosseguindo nas águas também primaciais de Euclides da Cunha (a sua obra-prima é tão grandiosa que já acolheu o mediano Vargas Llosa, um húngaro e dois argentinos, todos enfiados no mesmo camisão do Conselheiro — o que soa quase pornográfico).
Eis, então, uma literatura que começa com pelo menos dois mestres criadores de obras de alta voltagem literária — o que torna mais incompreensível, ainda, que ela esteja produzindo, agora, galeras de escritores ligados na monotonia do Mercado das grandes editoras.
Foi tão ruim assim? Caiu de cem metros de altura? Não, a queda foi gradual, progressiva e paulatina — e paulificante também (o que espero que este texto de homenagem à Elvira Vigna não se torne, viajando como eu viajo sempre que escrevo sobre coisas que ocupam lugares fixos na cabeça dos professores). Andando com o travelling ao contrário, Afrânio Peixoto pode ser visto a copiar, em seguida, o modelo do romance francês de segunda (ou de terceira?), à maneira dos diluidores de Balzac ou daqueles dois anões descartáveis, Paul Bourget e Marcel Prévost. Foram as tutelares “divindades” de cartório que Afrânio escolheu para si, enquanto se preparava, na forja, o espírito sombrio de Lima Barreto (CEM ANOS neste ano) olhando para além daquela cerca, vendo a estranheza dos destinos adultos, nos subúrbios do mesmo Rio de Machado… embora isso não tenha sido suficiente para emancipar o seu olhar (ainda assim, original) de influências conflitantes demais para lhe darem sossego e ânimo de seguir o próprio faro — independentemente — para o pequeno e o não-relevante, tomados como temas, à Bartleby, na melhor linhagem das obsessões de Kafka, Svevo e Joyce.
Outro Barreto (Paulo), escrevendo sob o pseudônimo de João do Rio, enveredaria por dentro das noites — elegantes e deselegantes —, em busca de novas estranhezas como que captadas através de espelho art nouveau, até morrer, como Lima, às vésperas do Modernismo que só modernizaria a nossa poesia, inicialmente (de 1922 a 1928).
O que eu estou querendo ressaltar é que, desde o brilhante começo, a nossa ficção foi perdendo a força inicial, da raiz “psicológica” (vá lá a palavra!) e apesar dos esforços díspares — em tantas e tão diversas direções — de Dyonélio Machado, no Sul, de Cornélio Pena, em São Paulo, e do mineiro Lúcio Cardoso, no mundo fixo tanto do submundo urbano quanto dos porões dos velhos solares que se tornarão o emblema da sua obra (juntamente com a de Pena).
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