A beleza salvará o mundo, A beleza salvará o mundo, A beleza salvará o mundo. O título do livro de Tzvetan Todorov, como raios solares avisam que é dia, abraça este planeta que habitamos e espera um abraço de volta. A beleza salvará o mundo, A beleza salvará o mundo, um mantra, uma reza, um desejo que vem do fígado da Terra, como vem das entranhas e não do coração de uma pessoa o amor por outra pessoa, e no lugar dos deuses um punhado de humanos corresponde. É um começo. Mas essa beleza, desentranhada meio do cosmo e meio da gente, realmente pode salvar todo mundo, um dia?
Será no dia, talvez, em que saibamos, enfim, o que significa beleza? Será no tempo em que entendamos que a casa dos sete bilhões e meio de humanos é uma só e a mesma? Será quando pudermos definir o que é, além da beleza, o amor — esses conceitos disformes que em cada um tem uma cor? Se a beleza não salvar o mundo, o que salvará (e do que exatamente)?
É um mantra, é uma reza, mas não há um único mantra nem uma só reza. Há milhares de línguas, em redução, na população que cresce e é cada vez menos vária. Há muitas crenças para deuses sob medida a cada certeza, enquanto a beleza, sem nome e sem cara, demora a salvar esse mundo.
A beleza, esse espanto tranquilo que não termina. Admiração profunda, no exato oposto do que alguns de nós entendem por raso. E o que esses alguns chamam de raso os demais não chamam de nada, porque o raso é um não-pensamento, a não-reflexão. É um passeio, não exploração.
A arte é a exploração da beleza? Como cabe na arte a realidade? A arte é um dedo na ferida, é uma livre indignação? Por que não chamamos de realidade o telejornal e arte de fabulação, ainda que pela fabulação se possa adentrar mais na verdade? A beleza é certamente uma procura. E juro que passei as páginas do livro Mulheres de passagem procurando. Colhi dúvidas. E penso que o escritor M. A. Amaral Rezende não por acaso esconde seu primeiro nome em siglas, mantendo distância segura de intimidades, para poder justamente plantar com mais liberdade questionamentos, em seu exercício de asfaltar a beleza, nesse livro, com seu trator de realismo e violência.
Por princípio, acredito (duvidando) no texto da quarta capa: “M. A. Amaral Rezende metaboliza em literatura a difundida prática masculina da observação, cobiça e conquista do corpo da mulher. Uma prática ancestral que precede ou mesmo dispensa o amor, mas que não deixa de ser profundamente amorosa em sua devoção à beleza e ao arrebatamento que ela produz”. A experiência da leitura aponta que se tentou mesmo transmitir o que é o livro em sua essência.
Mulheres de passagem é uma coletânea de contos, apesar do que escreve o próprio autor no texto inicial: “contos talvez”. São 32 textos, mais a Preliminar, como batizou o pequeno prefácio. Alguns são curtos, de uma página e pouco, outros avançam bem mais. Estão divididos em sete partes. Entre elas, há unidade aparente mais pelos títulos do que pelas histórias. São todas em primeira pessoa e o narrador, um homem. Não fica claro se o mesmo homem, mas tudo indica que sim, porque os 32 contos têm o mesmo tom. É um homem que fala de mulheres pelo o que observa de seus corpos, que conta sobre os desejos e relações sexuais que vive com elas, que em vários dos contos as mata de diferentes maneiras, que não constrói, pelo menos com palavras no texto e sugestões do que não é escrito, amor, sequer compaixão.
O texto da quarta capa combina com a leitura do livro, quando explicita a intenção do autor em demonstrar ou denunciar o machismo clássico, a coisificação da mulher pelo homem através dos tempos e certamente ainda hoje, em 2017. No entanto, essa outra intenção de revelar amor por trás do desejo apenas do corpo e até do desprezo que leva aos assassinatos, essa intenção não se construiu claramente. O livro não inaugura um olhar sobre essa questão tão antiga e presente. O livro explicita o que já se conhece. Mas há quem possa achar a beleza entre as trepadas, as vontades de trepar e os corpos sem vida ao longo das páginas.
A beleza, aos olhos desse narrador masculino, macho pra caramba, que tem grana, viaja, dirige carros, a beleza é o que seu desejo sexual aponta e ele descreve assim: “Te ver deitada, ao lado da piscina, na cadeira longa branca, com as alças do sutiã desamarradas, por um tempo, até me reduziu a raiva pela noite anterior (carta a uma mulher #1)”; “Na última vez que te vi, de costas, gostei de teu vestido preto, com os botões da abertura central mal abotoados. Os arcos das alças faziam uma moldura curva para os ombros. Gostei deles, mais do que antes (carta a uma mulher #2)”; “As meninas daqui, da Ilha, são todas meio mulatas. Vai ser melhor ainda. Não haverá nenhuma marca dos biquínis anteriores (Escrito sobre a cama #4)”; “Gastara quase uma hora para selecioná-las no álbum de fotos. Ela era uma das mais caras, nível de preço de Londres (Nua na cama)”; “Quando Lúcia se inclinou, a alça do decote, muito solta, caiu de lado. Livrou um seio, cone longo, escuro na ponta, sem dobra inferior. Era todo queimado pelo sol, nem uma pequena marca de sombra sob a aréola (Fim de ano, festa)”.
O narrador despe suas mulheres de passagem mas não as revela quase. E ele próprio se mostra mais pelo jeito como as vê, nu e cru. É o que acontece, sem muita novidade de um para o outro, de um para o outro, de um para o outro, nos 32 contos. O tom é de um homem que senta num bar, a cerveja pós-trabalho de um fim de tarde, e conta detalhadamente suas aventuras sexuais a um amigo, sem mudar de assunto, até a madrugada. Tende a cansar. Mas deve-se levar em conta que esse cansaço pode ser um efeito consciente, com significação em si.
Mortes
Da observação seca e pouco sentimental sobre as mulheres ou seus corpos, muitos contos chegam a descrições de diferentes mortes ou assassinatos dessas passageiras do livro. E esses são os trechos que sugerem maior fabulação e metáfora. O homem que as vê como objetos de decoração e prazer gosta das mortes delas ou diretamente as provoca. Há um momento desses na obra que se destaca literariamente, pela linguagem:
Na estrada, já bem depois do pôr do sol, no escuro, recuperei o fascínio por ela. Era impossível parar de olhá-la, nem para ver o carro que derrapava na curva molhada. Quando seu corpo se jogou contra mim, tentei ir direto à sua boca. Ela escapou, deformada. Achei que me procurava na cintura. Ainda tentei segurá-la. Também abaixei a cabeça sem parar de ver seu pescoço e seus ombros. Não tinham mais a alça do vestido sobre eles. Se soltara tanto que nem cobria os seios. Avancei nela. Se antes a esperava, agora, quando ela se dava, não me segurava mais. Enquanto a direção não esmagou seu rosto, torcendo-o para baixo, olhava, no mesmo fascínio do início, seu perfil. Voltava ao começo, à mesma luz em seu rosto. Ela viera para mim, pela primeira vez.
Voltemos a Todorov: “A exigência de beleza não basta, portanto, para ordenar uma existência humana. Só se pode generalizá-la se entendermos paralelamente o seu sentido, como fazia Dostoievski ao designar como ‘beleza’ o amor universal”. O amor universal, o amor universal, o amor universal, em vez da beleza da moda que já cansou, do domínio violento do homem sobre a mulher, em vez da exploração vil do humano pelo humano, o amor universal e uma beleza redentora. Soa ingênuo? Que bom.