Golpes ao vento

Paulo Henrique Passos deseja nocautear o leitor, mas seus contos não passam de tentativas frustradas
Paulo Henrique Passos, autor de “Sindicato dos deuses”
30/07/2017

Certo dia, escrevendo sobre o fazer literário, Julio Cortázar comparou a arte à luta: afirmou que no romance o escritor vence o leitor por pontos, enquanto no conto a vitória se dá por nocaute. Acho a comparação bastante válida.

No entanto, o conceito de Cortázar enfrenta um grande problema: são poucos os escritores que como ele ou Hemingway sabem o que é ganhar — ou perder — uma luta por pontos ou uma luta por nocaute. Não digo com relação à teoria, acho que ninguém tem problema em diferenciar os dois finais possíveis de uma batalha, mas à prática. Salvo uma exceção aqui e outra nem sei onde, escritor não briga, não luta, não sobe em um ringue nem pra treinar alguma coisa. No máximo batem boca com garçom no bar. Não sabem como usar os punhos para se construir um nocaute ou como angariar pontos suficientes para superar o adversário.

Falemos especificamente do nocaute — o clássico, não o técnico, é claro. Você só sobe no ringue e nocauteia o adversário em poucos movimentos, talvez com um golpe solitário, se o cara for muito fraco, sem técnica alguma, com a resistência de um grilo, se você der muita sorte ou, o que é mais improvável, se você for um Mohamed Ali da vida — e tiver um quase sparring do outro lado, não o George Foreman. Aliás, a luta entre Ali e Foreman no Zaire é um grande exemplo de alguém que buscou a todo tempo o nocaute (Foreman), mas foi superado pela técnica (de utilizar as cordas para transferir a absorção dos golpes, como fez Ali).

Um nocaute precisa ser construído. Jab, jab, jab, cruzados, ganchos, danças, diretos desperdiçados, diretos que pegam nas luvas, esquivas, muitas esquivas, alguma provocação… Linha de cintura, boca do estômago para abalar a respiração, pendula pra direita, pendula pra esquerda, recua, abraça, solta o braço direito no baço do cidadão, uma das maiores dores que existe… São muitos os recursos que um lutador precisa utilizar até que o oponente dê uma brecha, deixe o queixo (de preferência) desguarnecido e tome uma bela de uma porrada bem naquela ponta do rosto, porrada que faz chacoalhar o cérebro, que se debate contra a parede do crânio. Porrada que leva o maldito oponente à lona.

Exatamente como deveria ser quando lemos um grande conto, segundo Cortázar.

Acontece que muitos escritores, ao se depararem com o ensinamento mas não fazerem ideia de como se nocauteia alguém, acreditam que basta subir no ringue e dar uma porrada mais ou menos bem dada para resolver a briga. Não, não é assim, definitivamente. Não bastam algumas poucas linhas com alguma quebra de expectativa no final, uma reversão supostamente genial ou personagens e situações surpreendentes ou inusitadas para se levar um bom leitor ao chão.

Chega a ser injusto citar apenas um escritor como exemplo desse problema tão recorrente em nossa literatura. Contudo, como este texto se propõe a falar de Sindicato dos deuses, livro publicado pela Substânsia (sim, com S mesmo onde você imaginou que deveria ter um C), editora de Fortaleza, a exposição sobrou mesmo para seu autor, Paulo Henrique Passos, que desperdiça golpe atrás de golpe na tentativa de fazer o leitor dar uma narigada no solo em seus 25 contos.

Paulo parece ser um bom lutador, digo, um bom escritor, mas o que vemos no livro é uma série de ideias com potencial sendo desperdiçada — Adão e Eva achincalhados por cristãos apenas por manifestarem o amor, a adolescente que mesmo dormindo mexe com a libido de seu pai e seu irmão, o deus que, numa reunião com seus pares, usa os braços para fazer o gesto de banana, imitando algo caro à própria cria, o homem… O autor tem pressa para concluir seu serviço a cada conto, o que acaba por prejudicar o ritmo, a ambientação e o desenvolvimento dos personagens e das situações nas breves — brevíssimas — narrativas. Afobado, Paulo busca nocautear o leitor logo nos primeiros segundo da batalha, mas seus golpes acabam acertando apenas o ar ou, no máximo, as luvas. O escritor tem ímpeto para trucidar o adversário, mas fracassa por não envolvê-lo antes do grande murro.

Conto com um quê profético
Mas Paulo é jovem — nasceu em 1988 — e as boas ideias aliadas a um texto ao menos razoável (que carece da tal carpintaria) podem lhe servir de base para crescer como escritor. Além do texto homônimo ao livro, um dos contos de Sindicato dos deuses que chamaram minha atenção foi Manual de como torturar sem deixar marcas. Nele, um deputado garante que conseguirá tornar prefeito de uma pequena cidade um dos integrantes de seu partido. Explica aos seus cupinchas como deverão proceder para garantir os votos necessários: assediar quem precisa “de uma consulta médica, de um remédio caro, de uma cesta básica, de um botijão de gás, enfim, gente que tá de alguma forma necessitada”. Fala que farão um favor ou outro de cara, mas só atenderão aos demais pedidos caso o candidato seja eleito.

Depois que vencem a campanha, uma gravação com a fala do deputado explicando como ganhariam a eleição é vazada. Aí vem o tom quase que profético da peça:

O prefeito recém-eleito teve que se explicar para a imprensa. Recebeu toda a reprovação da população local e nacional, só não maior que as manifestações de revolta contra o deputado, protagonista do vídeo. A justiça, também procurada pelos repórteres, nada pôde fazer a não ser declarar que não havia provas de que aquele esquema tinha sido posto em prática e que a palestra dada pelo deputado não passava de intenções corruptivas.

Tudo não passou de uma tremenda brincadeira, de uma conversa brincalhona entre amigos falou Aristoldo Marques ao repórter.

Pois é confirmou o prefeito.

Uma brincadeira, uma conversa entre amigos, igualzinho aos nossos senadores que falam ao telefone sobre matar o primo ou que não fazem nada de errado, apenas traficam drogas. Esses também mereciam um nocaute, um nocaute que pouco tem a ver com a literatura.

Sindicato dos deuses
Paulo Henrique Passos
Substânsia
112 págs.
Paulo Henrique Passos
Nasceu em Fortaleza (CE), em abril de 1988. É graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará, estado onde dá aulas na rede pública de ensino. Integrou durante seis anos o Grupo Eufonia de Literatura. Alguns de seus textos podem ser lidos no site Literatura.Br.
Rodrigo Casarin

É jornalista, especialista em Jornalismo Literário com pós-graduação pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e editor do Página Cinco (paginacinco.blogosfera.uol.com.br), blog de livros do Uol. Além disso, colabora ou já colaborou escrevendo sobre o universo literário com veículos como Valor Econômico, Carta Capital, Continente, Suplemento Literário Pernambuco, e Cândido. Integrou o júri do Oceanos – Prêmio de Literatura em Língua Portuguesa em 2018, 2019 e 2020 e o júri do Prêmio Jabuti em 2019.

Rascunho