Não apenas o verso livre, mas o prosaísmo — pois não coincidem necessariamente — dominam a poesia brasileira contemporânea. Quando a rebeldia vira regra, os maneirismos prosperam: se frase e verso se equiparam, qualquer sintagma passa por poético, assim como, há tempos, qualquer vacuidade bem metrificada passaria.
O que poderia assegurar, nesse panorama, o efeito perturbador do poema? Poesia é violência contra a linguagem, violência que já começa na disposição quebradiça do seu discurso: algo “a mais” terá de oferecer, para que se justifique. Se a estética do verso livre prosaico parece reduzir os recursos melódicos do poema — a chamada melopeia —, proporcionalmente solta as amarras em termos de imagem e sentidos possíveis — a fanopeia e a logopeia, para seguirmos a terminologia de Ezra Pound.
Prisca Agustoni, em Hora zero, é um exemplo bem-sucedido de verso livre prosaico justamente por investir nesses dois domínios. A imagem é quase sempre inusitada, mas de um inusitado sem artifícios, como as surpresas do cotidiano: “Jogaram cor sobre o branco/ Dunas ao entardecer/ é nome de tinta ou sonho”. E assim é que, borrando o prosaísmo com assonâncias, recupera discretamente alguma musicalidade, até que a rima soe natural como numa conversação: “A casa da dona Irina/ está na virada da curva./ No topo da colina”. Algumas facilidades pontuais — “rebobinar o passado”; “manto da imaginação” — não desmerecem o conjunto.
Estruturalmente, trata-se de um livro-poema, apesar da relativa autonomia dos textos e seções. O leitor que seguir a sequência ganhará com os desdobramentos da metáfora central — casa. Uma casa vazia, arruinada, que o sujeito lírico percorre meio às cegas, percebendo, não os ajustes entre seres e coisas, mas incômodas disjunções. Na maioria dos poemas, os objetos são signos arredios ao homem, e ela própria, a casa, o seu “espelho avesso”, pelo acúmulo de sentidos que não se deixam refletir. Ora é a nova morada de quem parece estar se instalando após uma mudança, ora a antiga residência de infância, cheia de ecos, vozes familiares que repercutem ainda. Esse desafio de recriar um espaço de existência, espécie de “ponto zero” da memória, impregna a escrita de Agustoni de um sentido de “orfandade” só mitigado pela experiência radical da gravidez: “E viro gato viro feto/ viro ovo perfeito/ redondo e autônomo/ outra vez/ impermeável aos fatos”.
Certa luz
Aqui chegamos ao núcleo de sentido do livro, sua logopeia. Sem discordar dos textos de apresentação — orelha e prefácio —, que ecoam o culturalismo ao falar de “errância” e “transitoriedade”, ou as categorias negativas da lírica moderna, ao falar de “casa profanada”, é possível ler Hora zero em pelo menos outra clave: aquilo que o discurso lírico deixa ver, o que lhe escapa e sugere — como certa luz de uma tarde de mudança, que um poema lamenta não guardar.
No desencontro dos seres e coisas, haveria uma subterrânea busca da comunhão; na “desconstrução” da casa como abrigo, a ânsia velada de seu refazimento; nas muitas referências ao Éden, não tanto a certeza de um malogro, mas a teimosa esperança de redenção. É “quase um desaforo”, para usar uma expressão do livro, que as plantas do jardim dessa casa disjuntiva rendam uma deliciosa enumeração por analogia (que só é caótica na adjetivação). E se o poema que justifica o título — Hora zero — fala de um “tempo oco tempo zero”, há uma “quase eternidade”, por vezes uma “frágil eternidade” que ronda essa escrita, ainda que deslocada para os objetos. Ora, quando a morte escolhe entre os vivos os que vai levar, o critério é saber os que não temem “habitar nas frestas”.
Ao leitor do verso livre prosaico a quem é dado fruir alguma melodia da fala, nas rimas e assonâncias eventuais de Prisca Agustoni, também se conceda a liberdade de imagem e sentido — “habitar nas frestas” —, desde quando não desborde da obra (a chamada superinterpretação). Uma pequena e significativa seção do livro, Ex-votos, revisita, com terna ironia, o imaginário de alguns santos católicos, mas o medo, elemento que percorre todo o livro, interdita a devoção: “se não fosse o medo/ poderíamos até nos ajoelhar/ e rezar/ nesse inquieto paraíso”. Éden, luz, a cor azul — outra reiteração significativa — e mais alguns vestígios permitem a liberdade de que falamos, a de ver em Hora zero não apenas sua errância, sua transitoriedade e profanação, mas a agonia de um imanentismo que já não se basta nos objetos, e busca fora deles aquilo mesmo que parece negar.